sábado, 28 de novembro de 2009

Scrooge no Ponto de Cém Réis


Covarde, hesito entre o Calçadão da Cardoso Vieira e o Ponto de Cém Réis, entre Campina e João Pessoa. Talvez não me “salve” por isso. Não sou tão partidário como Gonzaga Rodrigues, que fez da Capital seu definitivo e último microcosmo. Faço caminho inverso, às vezes. Pendular feito relógio doido sou um animal hipermidiático que ainda lê jornais impressos, na tela ou no computador.

Esta semana me deparo com algumas manchetes culturais que um sexto sentido animal me diz que são respingos dum processo pré-eleitoral. Não brotam do chão como sementes nem caem do céu como gotas de chuva de Verão. São friamente calculadas como balas a atingirem seu público. Ou melhor, seu alvo. Midiaticamente maquiavélicas engrenagens, trilhos prontos para um futuro in-certo. Em Campina, depois de muitos anos e mandato, autorizada a reforma do decadente teatro municipal Severino Cabral. Em João Pessoa, com grande pompa, comemoram-se com festival os não sei quantos anos do Theatro Santa Roza.

Entre o pseudo-armorial remodelado “zéparaíba” Jessier Quirino lançando seu berro novo de bezerro a quarenta Reais e um pernambucanamente nômade Antônio Nóbrega “de grátis” como atração de um comício, você escolheria quem? Poesia dita, escrita ou musicada? Ou dançada? Entre um festival de teatro que sai às pressas e um encontro de foles e sanfonas você escolheria o quê? Talvez nenhum dos dois, talvez porque esteja a fim de sorver como um Drácula sem excitação todo sangue cultural dum Lua Nova junto aos comportados vampiros de classe média alta, num shopping qualquer em Manaíra beach. Vai uma pipoca? Desculpe, derrubei seu sorvete do McDonalds...

Entre todas essas opções do nosso pobre roteiro, me encontro no Ponto Cém Réis totalmente remodelado pelos futuristas arquitetos sem futuro que executam mudernas obras numa “paraibarroca cidade”, pra lembrar nosso “êmicí” Amador Ribeiro Neto. Local transformado ou assassinado? O sancho pampa Lau Siqueira como Borges montado no seu ginete cultural nos faz acreditar que como Heráclito nunca atravessamos o mesmo lugar, assim resolvo deixar de saudosismo retrô e encarar a coisa como ela é, a la Nelson Rodrigues....

Milimetricamente os coreanos já tomaram conta do pedaço, abriram uma lanchonete gostosa com pastéis paulistas, sucesso do momento. Imobilizado em bronze, diferente do poeta Caixa D´água, que foi martelado no cimento do provisório, o já sem óculos compositor Livardo Alves não faz nenhuma objeção em posar para fotos dos minguados turistas culturais. Assim, a prata da casa, com suas câmeras de celulares de baixa resolução faz a festa com o célebre poeta da cueca, ícone recriado pelo marqueteiro Walter Santos. Ao lado, como se a história se repetisse como farsa, brota do nada outro café, Carlos Café, para a alegria dos velhinhos, antigos e conservadores. Bem ali, pra o gosto da freguesa contemporânea, que acompanha todas as novelas e as tendências da moda, tem uma nova malharia, tudo na promoção mesmo, vai lá conferir, grita o homem inspirado em Sílvio Santos, numa caixa de som. E uma loja de games, alguns piratas, claro, para a euforia da meninada infodependente da violenta realidade virtual. Lâmpadas numa árvore de piscapisca, no Camelódromo das contradições chinesas no antigo prédio do INSS antecipam poeticamente e drasticamente o Natal. As árvores pequenas, essas de verdade, plantadas pelo poder público municipal, se prosperarem, darão sombra no futuro, seja este ou aquele o governador. Enquanto isso, sacrificialmente os espetinhos relembram tragicamente a fumaça da judaizada Branca Dias.

E como se num milagre de dezembro em fins de novembro, num filme adaptado ou num livro do próprio Charles Dickens o recém convertido em caridoso e cristão senhor Ebenezer Srooge reaparece em pleno Ponto de Cém Réis distribuindo livros usados num ousado, bondoso e cristão projeto cultural pré-eleitoral de promoção da leitura junto ao povo. Entro na fila da sopa com fome. Como os outros consumidores culturais e me refestelo com o gratuito banquete subplatônico. Encontro poesias do esquecido barbeiro-poeta Eulajose Dias e do nosso grande cronista Luiz Augusto Crispim. E está feito nosso cântico de Natal antecipado...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cordilheira em Borborema


Fazendo uma cara de que nada entendi, cinicamente disparo para o homem que vem passando pelo Calçadão da Cardoso Vieira: galego, esse pessoal é de onde?
- Sei lá, é bem do Cariri...
Vestidos mais que tipicamente, os integrantes do grupo nômade Purik, do Equador estão como centro das atenções no Calçadão. Um pequeno gerador movido a gasolina alimenta duas caixas de som. Um menino e dois homens cantam as músicas do CD Caminante de los Andes. As mulheres, duas senhoras baixinhas e uma jovem de cabelos negros em trança, sorridentes oferecem roupas,discos do grupo, bolsas, flautas de bambu entre outras coisas ao público ouvinte.
Na mesa do SãoBraz, estendida no Calçadão, Mateus e Celeste entretidos só conversam sobre psicanálise. Ao lado, não dou bola pra Lacan muito menos pra Freud, exerço meu direito ao devaneio e, de longe, observo a cena.
Ao lado do Supermercado Tropeiros e em frente aos dois chaveiros da Cardoso, o grupo parece estar nas alturas ao tocar Condor Pasa e continuar com Guantanamera. Biliu de Campina atravessa o espetáculo de camisa xadrez verde e encontra Baixinho do Pandeiro, que também acompanha a apresentação.
Ao redor do grupo param um rapaz e sua bicicleta de entregar água mineral, um outro homem que vende café. Os engraxates batucam suas caixas normalmente, como se nada pudesse interferir na rotina do Calçadão ou roubar a atenção de possíveis fregueses.
Senhora, senhora, repito a pergunta inicial a uma mulher de seus 50 anos que vem passando desatenta, talvez vinda da Maciel Pinheiro, com duas sacolas de plástico na mão:
- Sei não, eles devem ser indios apaches ou do paraguai. Mas vou me embora daqui porque essa música me dá sono.
Repito a pergunta a um jovem:
- Eles são coreanos...
Com um sorriso revestido de ouro nos dentes, vem chegando Biu do Violão, figura folclórica da cidade. Senta-se na mesa, no Café São Braz e vai logo fazendo sua interpretação:
- Sabe não...eles são cruzamento de peruano com paraguaio, mas não gosto da música deles não, prefiro Roberto Carlos. E essa coisa de cantar na rua em Campina quem inventou foi eu nos anos 70, quando ainda havia seresta por aqui. Os portugueses donos de restaurantes davam graças a Deus quando a gente chegava com um violão para eles venderem cana. Depois, eles ficaram ricos e venderam os negócios pros brasileiros. Os brasileiros ficaram ricos também e não deixaram mais a gente chegar com um violão nos restaurantes...
A apresentação termina. Algumas moedas no chapéu de palha e só. Decepcionados, recolhem as caixas de som e os microfones. A caixa com CDs fica aberta e um homem se aproxima:
- quantequié?
- Dez riais
-......
Um artista de rua, Moreno aproveita o vácuo do fim da apresentação do grupo Purik e monta seu jogo de apostas, na verdade um mini campo de futebol riscado num tapete velho com apenas uma trave e cinco canecos de alumínio empilhados:
- Bora, bora, acabou a música, mas brincadeira continua, é um real pago cinco pra quem derrubar os cinco caneco duma vez....o erro não ta na bola mas no seu pé!!
O equatoriano ainda vestido a caráter não resiste e vai apostar. Novo dono da cena popular, o moreno faz catimba com seu apito vermelho de juiz de futebol, tudo isso pra desconcentar o jogador estrangeiro. Mexe na trave para tirar de esquadro a mira do apostador. Os observadores quase não respiram porque é um pênalti contra o Brasil e o futuro da seleção está nos pés do adversário equatoriano.
O músico chuta....decepção nas núvens novamente. Vingativa, a torcida vibra contra. O cartão vermelho levantado pelo dono do jogo e a advertência:
-Tá fora, ta fora...próximo, próximo!!!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Adorno e o trabalho docente


Corri para as estantes da biblioteca em busca do meu exemplar de “Educação e Emancipação”, coletânea de escritos do pensador Theodor W. Adorno (1903-1969), publicada pela Paz e Terra, em 1995. Demorou a achá-lo em meio ao amontoado caótico de livros que se tornou minha casa nesses anos, sim casa tomada, como em Cortázar. A folha de rosto marca muito bem com a minha assinatura e a data que estamos distantes daquela primeira leitura de outubro de 1997, quando fazia mestrado em Letras na UFPB e cursava a disciplina de Metodologia do Ensino Superior com o grande professor Luizito.

Pois bem, no livro Adorno se esforça para refletir sobre o sentido de se falar em educação, principalmente depois da barbárie que foi Auschwitz e o nazismo como um todo. O idealizador do conceito de indústria cultural também se preocupa com a relação entre filosofia e educação, televisão e formação, educação e emancipação etc. Mas eu procurava especificamente um trecho que me impressionou naquela primeira leitura dos escritos de teoria crítica sobre educação. Deixe-me folheá-lo, sim está ali em “Tabus acerca do magistério”, no qual Adorno nos mostra uma histórica ambivalência da figura do professor, que ora aparece como lacaio, preceptor, escravo, escriba, escrivão, monge etc. Daí, ele conclui que “a influência de antigas referências de professores como escravos” (p.102) é contraposta a uma “adoração mágica dispensada aos professores em alguns países, nos quais o magistério é vinculado à autoridade religiosa.

Confesso que tais preocupações sobre o trabalho docente e sobre as significações sociais e históricas do magistério me acometeram fortemente neste quase final de ano por conta de um silencioso mas turbulento processo que vem ocorrendo na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ele tira o sono da grande maioria de professores universitários estaduais. Cerca de dois anos atrás, desde a aprovação pelo então governador Cássio Cunha Lima da autonomia financeira da instituição de ensino superior e da votação pela Assembléia Legislativa do chamado Plano de Cargos e Salários, ficou acertado que a progressão docente na carreira do magistério superior só se dará mediante a avaliação de desempenho do docente e que tal avaliação deve ser feita a partir de resolução própria, aprovada nos próprios fóruns da UEPB. O que ocorre é que, passados quase dois anos do Plano, a administração central da Universidade não encaminhou nenhuma proposta consistente de avaliação docente para a discussão em seus fóruns e agora chega com uma proposta de minuta para “ampla discussão e debate” faltando apenas dois meses para o fim do ano e para progressão dos professores por mérito de desempenho acadêmico. É um pacote natalino que na verdade vai dificultar a progressão de grande parte do quadro docente da UEPB.

O que no mínimo os professores da instituição se sentem é traídos por um grupo que se encastelou nas estruturas sindicais e burocráticas da instituição e agora chega com uma proposta que parece com o que os docentes mais reclamam de seus alunos: uma cópia apressada e distorcida das resoluções de universidades como a UFCG, UFMG entre outras. E o pior, em muitos casos, ser diretor de centro, sindicalista, coordenador ou mesmo reitor favorece e muito o professor na hora da avaliação. Há uma clara penalização do ensino, do professor que dá aula, daquele que está todo dia ali, como o repetitivo como o bico da ave a comer as entranhas de Prometeu acorrentado. O ensino de graduação e a orientação de monografias de conclusão de curso na tabela de pontos a serem somados ao longo desses dois anos para se merecer a mudança de nível são vergonhosamente sub-valorizados.

Discutir tais questões não significa vincular a carreira docente ou os destinos da universidade às eleições futuras ou mesquinhas disputas políticas partidárias ou sindicais. Trata-se de defender os direitos dos professores, essas figuras ambíguas que transitam entre o estigma da antiga escravidão e a liberdade de ensino em sala de aula. Discutir tais questões também não significa ser contra a avaliação do trabalho docente, pelo contrário, temos de avaliar sim, mas justamente. Não sou contra as avaliações, mas acredito que elas devem ser encaradas não como vingança política, vendeta ou instrumento punitivo para os sujeitos rebeldes ou críticos.

Reduzir a intelectualidade ao valor de troca como diz Adorno em “Educação e emancipação” faz com que o professor seja encarado de forma mercantil ou mecânica. É o que ocorre hoje, em plena era dos técnicos cabeça de planilha, no qual os professores são “avaliados” apenas por métodos quase que exclusivamente quantitativos, num esdrúxulo sistema de trabalho misto de taylorismo e fordismo, em plena época pós-toyotista, na qual os diretos e garantias dos indivíduos e dos grupos são brutalmente submetidos na tirania do mercado em crise. Retoma-se assim a condição primeira do professor como soldado cativo de guerra. Guerra esta entre trabalho e capital, entre esforço para se construir intelectualmente e o de confortavelmente exercer quase em toda a “carreira” em postos de poder na burocracia estatal universitária ou sindical.

Neste sentido, vale refletir, discutir e questionar tal tentativa apressada de avaliação docente...decentemente!

Carlos Azevedo é professor-doutor do Curso de Comunicação Social da UEPB.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

“Catolé do Norte”, praça de guerra...onde Veja berra



- Papai, olha aquele homem ali, é o Chico César?

-É filho, é ele mesmo...

- O que ele fazendo aqui no Shopping Sul? Ele é de verdade?

- Filho, ele é de verdade sim, é mesmo o Chico César.

- E o que ele vai fazer lá em cima, Papai?!

- O mesmo que a gente fez: almoçar fora, porque hoje é sábado...

O diálogo entre pai e filho se encerra ao cruzarmos com o cantor de Catolé do Rocha que vai subindo a rampa. Ele escuta parte da conversa, apressado, sorri para os fãs.

Como sempre, não acredito em coincidências, depois explico o porquê.

Ao chegarmos a casa, abro a caixa de correio em busca da revista Veja ou do jornal de domingo, que eles teimam em nos antecipar nos tediosos dias de sábado. Ela está lá sim, bem no fundo, enrolada como uma cobra de papel colorido.

Aos lulistas de plantão ou esquerdistas asmáticos, daqueles que desmaiam ao ouvir qualquer referência à direita, vou logo explicando que não assinei a revista, apesar de recebê-la com regularidade. Como é que é? Eu era um dos milhares consumidores da Revista da Semana, do Grupo Abril, publicação bem legal, num formato econômico, que tinha tudo pra dar certo. Sem mais nem menos a Abril acabou com a magra revista e nos enviou uma correspondência avisando que não teríamos nenhum prejuízo, seríamos agora assinantes de Veja. Como ensino a disciplina Redação em Revista no Curso de Comunicação Social da UEPB, em Campina Grande, aproveitei a promoção apenas pra ter mais assunto nas minhas aulas.

Agora vamos às coincidências, pois bem, achava que tinha encontrado o Chico César por acaso...

Estava folheando a revista e vendo o desafio de se fazer uma publicação semanal no Brasil, lugar de escândalos quase diários. Pois bem, para dar uma arejada no leitor ou para aproveitar a queda nos preços das passagens aéreas por conta da tal da gripe suína, escalaram a repórter Thaís Oyama para entrar no que Veja considera o “país mais fechado e estranho do mundo”: Coreia do Norte.

Lembrei que coisa de dez anos atrás, em Campina Grande, mais precisamente no auditório da Associação Comercial, cedido gentilmente ao Curso de Comunicação. Fui um dos incautos a compor a platéia formada quase que totalmente de estudantes de jornalismo ávidos a escutar os conselhos da então “notável” entrevistadora de paginas amarelas da principal revista do grupo Abril, Thaís Oyama

O burburinho dos estudantes só vai ser aplacado quando a professora Socorro Palitó vai ao microfone, diz alô, alô, alô, som... boa noite! Convida ao palco principal a repórter de Veja, que vai dar uma palestra sobre a entrevista jornalística. Do meio da estudantada surge uma moça de descendência japonesa, trajando um vestidinho básico preto. Contratada dois anos antes para compor a equipe da Abril, ela passeia pelas recomendações básicas para uma boa entrevista, fala da importância dos equipamentos, das pilhas do gravador, da fita etc. Os estudantes, maravilhados com as informações óbvias, não escondem o delírio de estarem vendo alguém de Veja, veja que subdesenvolvimento regional ainda sofríamos. O meu bom humor de sempre é substituído por uma cara feia, daquelas de quem ouviu e não gostou. Fiquei pensando nas minhas aulas de teóricas sobre reportagem, todas inúteis frente aos olhos da jornalista de SP.

Anos depois, já em 2008, Thaís Oyama continua suas dicas no livro “A arte de entrevistar bem”, publicado pela Editora Contexto (de São Paulo) e consumido e fotocopiado aos montes pelos estudantes de jornalismo de todo país... São as mesmas informações, me decepciono ao comprar o livrinho, lá na Livraria Almeida. E agora, na orelha do manual, ela se diz especialista em palestras sobre técnicas de entrevistas...

Mas o que tem a ver os olhar de Thaís Oyama na “reportagem especial” de doze páginas de Veja sobre a Coréia do Norte com o nosso Chico César de Catolé do Rocha? Pois bem, ao escrever sobre o filho do líder comunista norte-coreano Kim Jong-II, Thaís Oyama nos lança o seguinte comentário: “Onde está Kim Jong-II, o filho? Não demora para o visitante entender que o tirano norte-coreano, de cabelos espetados como os do cantor Chico César, é, entre os Kims, o menor. O `Querido Líder´, como é chamado no país, é pouco mais do que o representante de seu pai na terra (...)” (p. 107-8) ou mais adiante ela completa sua comparação com a frase: “O Chico César coreano não é exatamente um gênio da política e da administração- sua opção preferencial é pelo investimento em armas nucleares.” (p.108).

“Catolé do Rocha/Praça de Guerra/ Catolé do Rocha/ onde o homem bode berra.” Caro professor e poeta Amador Ribeiro Neto será que finalmente entendi a letra de “Beradêro”, cantada a capela, que ecoa desde o distante primeiro disco do paraibano Chico César em “Aos vivos” de 1995?! Ou a repórter de Veja, enviada aos confins da terra, a um “país fechado e estranho”, errou a mão (ou melhor, no cabelo) na comparação superficial e sem sentido entre o ditador norte-coreano com o cantor paraibano? Acho que sim. Entre o olho vesgo para a direita de Veja e o olhar preconceituoso com os cabelos de Chico César, Oyama esqueceu de se reconhecer num país de milhares de pessoas de olhinhos simpáticos, esqueceu das diferenças entre oriente e ocidente. Perdeu uma grande chance. E olha que o Chico César já tinha cantado tal questão num disco chamado paradoxalmente de “Respeitem meus cabelos, brancos”, lançado em 2002, do qual vale transcrever parte da letra: “Respeitem meus cabelos, brancos/ Chegou a hora de falar, vamos ser francos/ Pois quando o preto fala, o branco cala ou deixa a sala com veludo nos tamancos/ Cabelo veio da África, junto com meus santos (....) Batuques, toques, mandingas, danças, tranças, cantos/ Respeitem meus cabelos brancos/ Se eu quero pixaim, deixa!/ Se eu quero enrolar, deixa!/ Se eu quero colorir, deixa!/ Se eu quero assanhar, deixa!/ Deixa, deixa a madeixa balançar (...) /fui claro??”.

Não podia terminar sem lembrar ao leitor que antes de despontar no cenário musical brasileiro contemporâneo como um dos grandes compositores do país, Chico César trabalhou duro como revisor, na Editora Abril, lá em São Paulo, nesse “lugar fechado e estranho” dum país aberto chamado Brasil

Com certeza, ele não deixaria passar uma comparação sem nexo desse tipo!

domingo, 2 de agosto de 2009

O MEZ DA GRIPE (Ou: variações de um vírus para jornal, piano, TV, internet e orquestra AH1N1)


“Atraídos como moscas ingênuas eles nem suspeitavam da silenciosa e invisível contaminação. Consumidores oportunistas iludem-se com as mensagens de até 80% de desconto em todos os itens. E o vírus da grippe circulava livremente pelos corredores climatizados do Leviatã Shopping. Construído como uma chaga que cresce dia após dia nas margens dum rio morto, o centro comercial vai ser vitimado paradoxalmente por um simples vírus.

Agosto, mês depois, o colossal Leviatã está quase vazio. Apenas alguns sobreviventes funcionários armados da segurança, usando máscara tal como bandidos, guardam o local. Como se todo aquele sonho tivesse apodrecido junto ao rio. As pessoas escondem-se em suas casas, com estoque limitado de comida, esperando boas novas ou Godot em frente da fogueira eletrônica da televisão.”

(Corte na carne do vídeo. Imagem chuviscada na TELA...)

(... ZZZZZZZ. Sem sinais de transmissão digital.)

Desperto num zapping. Na rede, um livro de asas abertas parece pousado em minhas mãos como um pássaro agourento.

Traço um cenário sinistro assim num pesadelo inspirado na leitura da novela “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, publicado originalmente em Curitiba, pela Fundação Cultural, Casa Romário Martins, em 1981. Comprei o moribundo exemplar num sebo, anos atrás. A leitura sempre adiada parecia esperar o momento certo. Encontrei-o emparedado, como num conto de Poe, entre dois pesados livros de Dostoiévski, na desordem de minha bibliotecaverna.

O pânico com a nova gripe espalha-se nos meios de comunicação como um vírus. A doença parece alastrar-se como um boato. As autoridades em pânico aconselham calma....tudo está tão vazio.

“Um homem eu caminho sozinho nesta cidade sem gente e as gentes estão nas casas” (p.9). O livro de Valêncio Xavier é também um passeio, um mórbido passeio composto de recortes de jornais da época, do início do século XX, quando a grippe espanhola vitimou milhares de pessoas pelo mundo.

Num desvio, largo o livrinho de 75 páginas e me dirijo ao gordo Almanaque Abril. Um professor meu, Giovanni, muito tempo atrás, me disse que só conseguiu passar no vestibular por conta dele. E assim, sempre tenho um aqui em casa, como um remédio necessário e amargo. Logo minhas aflições são recompensadas com a informação precisa e curta. Diz que a Espanhola foi a maior pandemia de gripe que se tem registro e ocorreu nos anos de 1918 e 1919, com uma letalidade de 2%. E imagina-se que o vírus tenha surgido nos EUA e se espalhado pelo mundo, de carona, por conta da movimentação de tropas durante a I Grande Guerra.

Continuamente a mesma farsa se repete na História. Comerciais, clipes, guerras, terroristas, prisões como a de Guantánamo, porcos e vírus, tudo misturado, argamassado. Militarismos & sanitarismos impotentes no descontrole da situação. Cenário de uma guerra contra o terror invisível desenha-se. Paradoxalmente, acho que a imagem que mais corresponde ao momento de hoje pode ser achada na capa do disco “Animals” do Pink Floyd, mais precisamente nas músicas “Pigs on the Wing” e “Pigs on the Wing 2”, de 1977. Sim, concretamente os porcos estão a flutuar. E o ar se tornou rarefeito, pesado, emporcalhado, tal como no Senado. No entanto, como Marshall Bermann pinçou cirurgicamente da lavra do barbudo Marx: tudo que é sólido se desmancha no ar. E a levitação é uma arte das mais pesadas. Emporcalhamos tudo, big man, pig man! Cachorros cínicos reclamamos injustamente da natureza. É bom também lembrar que na Revolução dos Bichos, os porcos estão estrategicamente sentados no poder. O discurso sanitário e moralista gosma em suas bocas. Urge uma nova e marxista-leninista-trotskista-maoísta permanentemente mutante & ambulante revolta da vacina, dessa vez liderada por um vírus emporcalhado.

Influenza num país de múltiplas influências, conflitos e confluências. Influenza parece ser eterna e não ter remédio para ela devido à sua própria mutação, modificação. Vasta combinação e recombinação de genes, o vírus é mais rápido que a ciência e a sociedade de consumo. Ao invisivelmente sentenciar a limitação dos saberes do homem, a chamada Gripe Suína nos devolve a condição bestial de porcos, porcos com asas. Gripe eterna que atravessa a história num único espirro milenar. Metáfora viva da globalização, ela atinge todos, num único erótico sopro de prazer e morte. Espalha o terror em ambientes fechados e denuncia a sociedade que se fecha em si mesma. Provoca o vazio e nele se desenvolve. Entre o Estado e o Mercado, num entrelugar, o vírus habita os corpos e devora as mentes.

Mas retornemos ao livrinho-novella de Valêncio Xavier. Bricolagem hábil de textos dos mais diversos gêneros (notícias, anúncios de jornais, relatórios), “O mez da grippe” também me faz lembrar a pioneira arqueologia moderna dum Gilberto Freyre ao escacar nos jornais pernambucanos recortes que construam um retrato da representação da escravidão num outro livrinho belíssimo, que também vale ser lido. Ou mesmo as aulas pós-modernas dum tropicalista Jommard Muniz de Brito ou dum antenado professor como Cláudio Paiva, todos os dois com seus abismos e provocações, num mítico DAC (Departamento de Artes e Comunicação) da UFPB, tempos atrás. O ato de brincar com os recortes nos lembra que a linguagem também é um jogo de múltiplas combinações.

Em “O mez da grippe”, no prefácio de 1981, escrito Francisco Battega Netto vê-se na “escrita” pós-moderna de Xavier um livro-colagem que traz dentro de si as possibilidades de sucessivas montagens e desmontagens do discurso, tal como o vírus da gripe. Ao recortar os diversos textos e imagens de uma época ao mesmo tempo distante e próxima, Valêncio empunha uma tesoura que dá nova vida (sentido) a fragmentos que combinados de forma inovadora vão alimentar o próprio corpo/texto da literatura, da novela em si.

Um livro desesperadoramente atual mesmo 28 anos depois de publicado “O mez da grippe” repete-se como uma fantasmagoria pós-moderna na televisão e nos jornais brasileiros. Quem se habilita a fazer uma nova montagem sobre esta pandemia no suíno mês de agosto/desgosto?

Ou como diz meu filho Ícaro nos seus recém completados sete anos de sabedoria, ao ser indagado sobre o assunto: “Papai, a literatura é uma planta carnívora!”.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Borboletas da estação




Coloridas, as saias nem chegam a tocar o chão. Agitadamente, nervosamente, esvoaçam pelas ruas da cidade e param logo ali, no Calçadão da Cardoso Vieira, centro nervoso de Campina Grande, reduto masculino de aposentados, vendedores, engraxates e pedintes.

É o estranho encontro entre o nomadismo feminino e o sedentarismo local.

Logo cedo, não sei o porquê, um locutor do rádio disse pra ter cuidado com elas. Desconfiados, os homens fazem o alarido. E as ciganas, como numa guerra, vão ganhando posições. Encurraladas, deslocam-se e, ganham a parede da farmácia. Catam os pedestres pela cara, seguram o freguês pela mão e anunciam o poder de ler e revelar o futuro.

Vindas da Bahia chamam a atenção dos que passam e dos que cotidianamente vivenciam as praças da cidade. De todas as idades e cores, tal como borboletas, voam em bandos.

Defendem uns trocados com um poder que dizem ter. Vivem o presente através de um futuro imaginário lido na palma da mão. Percorrem as linhas como ruas de misterioso sentido. Obscuros, quebrados, os sulcos são interpretados, revistos, observados com um olhar ancestral.
Lê-se ansiedade na face da freguesa. Constrangida, mão aberta como um mapa, ela quer saber se vai dar certo o relacionamento com ele. Olho no olho, a cigana vai transformando em alívio o rosto da moça e está prestes a ganhar uma arara vermelha, dez reais. Experiente, com o pássaro na mão, a cigana sorri com o canto da boca, mostra sem querer um dente de ouro.

Preocupados com o futuro do futebol ou da política em 2010, remoendo a eterna rivalidade entre galo e raposa, os homens parecem não acreditar nas palavras das ciganas. Ocupam as calçadas e os bancos, tomam um pingado em Henrique´s lanches ou um café forte no São Braz. Nem chegam perto, muito embora lancem olhares hostis.

O calçadão e sua miríade de seres em movimento. Uma imensa mão aberta a acolher pedestres apressados, crianças de rua, ciganas, velhos, engraxates e pedintes.


quarta-feira, 6 de maio de 2009

O falso profeta


O falso profeta está morto. E sobre ele, como um punhado de terra suja, também apodrecem as críticas nem sempre justas. É certo que algumas de suas previsões nem sempre se cumpriram, mas podemos chegar à conclusão que ele estava certo em parte e que algumas de suas descobertas ou visões estavam bem fundamentadas. Mesmo assim, o falso profeta agora esquecido, descansa sem paz sobre seu próprio esquecimento.
Vítima dos modismos culturais que afetam a pretensiosa elite intelectual brasileira, o falso profeta da era eletrônica está sepulto no ciberespaço da vã memória e do esquecimento. Soterrado pelo peso da informação instantânea, pela quantidade de dados estocada não sei pra quê. Ele que era uma verdadeira mania dos tempos modernos, era discutido em seminários, salas, colóquios, cozinhas, eventos de especialistas, mesas de botequim, escritórios etc. Hoje habita o espaço nenhum...
Escafedeu-se, desmaterializou-se conforme suas próprias previsões.
Ex-gênio, desmascarado, farsante, cínico, copiador de idéias alheias. Filho bastardo da era da informação e da comunicação, hoje a simples pronuncia de seu nome junto aos nobres e renomados doutores professores de jornalismo causa arrepios e até crises universitárias de fricote. Os novos estudantes passarão quatro anos nas salas da universidade e sairão de lá sem ouvir a pronuncia de seu esquecido nome.
Alguns dão graças a Deus e pedem que ele descanse em paz num abrigo imaginário de velhinhos atrevidos que ousaram refletir sobre a comunicação e as culturas contemporâneas. Outros até reconhecem seu relativo valor, mas preferem não citar seu nome, para não se comprometerem, já que ele está fora de moda. Trata-se de um coitado, de um alegre bufão, de um arlequim dantesco que resolveu com uma simples analogia pensar a sociedade a partir de um circuito elétrico, como se aquela placa verde fosse toda a cidade ou o cérebro, com suas abstratas e incandescentes ruas do pensamento. E, logo ele que achava que o mundo tinha virado uma aldeia global, nem é lembrado nas minhas modestas aulas no curso de Comunicação, logo ali no bairro São José, em Campina Grande.
Colecionador de inutilidades, de frases feitas, de trocadilhos bestas. Acreditava que os meios de comunicação eram extensões do homem. E olha que o infeliz achava que tais meios eram prolongamentos do sistema nervoso. Basbaque e malandro ao mesmo tempo, enganava todo mundo dizendo que existiam meios quentes e frios. Ingênuo, achava que a palavra escrita iria desaparecer na era da TV, da imagem de cinema nas telas de cristal líquido. E logo ele, que dizia que a galáxia de Gutenberg estava sepultada, seu necrológio saiu por ironia num jornal dos anos 80. E ninguém lamentou, porque já naquela época ele já estava fora.
Logo com você, professor de literatura inglesa no Canadá, doutor honoris causa em várias universidades, nada disso importa. Você está esquecido cara. Já foi moda. E de modo algum vai voltar a não ser como um excêntrico e inconveniente fantasma. Um espertinho francês, Pierre não sei das quantas já copiou suas idéias sem sequer citar teu nome. E, por sinal, vive viajando pelo mundo posando de gênio. É isso aí bicho, é o ritmo da universidade, não é?

domingo, 26 de abril de 2009

Esparrela


*Carlos Azevedo
Com uma armadilha imaginária, o teatrólogo Fernando Teixeira capturou um imenso urubu. Conviveu com ele, observou seus hábitos e instintos. E, dizem que com a habilidade de ator com mais de 40 anos de palco incorporou a personagem chegando a voar e tudo.
Egoísta, escondeu o animal dentro de si. E depois de chegar até a decifrar seus pensamentos, silenciosamente foi mostrando aos amigos mais chegados o resultado de tal convivência. Nas primeiras noites da segunda quinzena de Abril, foi que houve a primeira apresentação do urubu na cena paraibana. Não foi num palco tão tradicional como o teatro Santa Roza ou num grande espaço tal como Paulo Pontes. Escondido numa das salas do antigo grupo Thomas Mindelo, logo ali nas quase-ruínas do centro histórico de João Pessoa, foi montada uma nova armadilha, dessa vez para o público. Só assim as pessoas puderam ver maravilhadas o resultado da peça “Esparrela”, na qual o teatrólogo interpreta ao mesmo tempo o homem Manoel e o urubu Arquimedes, essa ave genial que abre as suas longas asas sobre a existência humana e animal como um todo. Pasmem, matematicamente Arquimedes nos ensina a voar.
A cena de “Esparrela” é minimalista. Um espetáculo pocket, mas com uma densidade existencial muito grande. A platéia deve ser sempre pequena (umas 30 pessoas) e o ator tranquilamente consegue olhar no olho de cada um. Sem maquiagem, o rosto do ator Fernando Teixeira vira uma máscara de carne, máscara esta devorável pela fome do urubu Arquimedes.
Operando uma síntese corporal entre bicho e a pessoa, Teixeira valoriza e ao mesmo tempo denuncia a condição animal dos homens. Preso ao calcanhar de Manoel, o urubu Arquimedes é sua perdição e sua libertação. A fome de existência permeia todo o espetáculo, fome esta que devora a todos.
O corpo do ator em cada gesto, em cada passo, parece obstinado a cumprir a sina de todos e fazer girar a roda da vida-morte-vida. É uma travessia corporal na qual Teixeira transporta em seu corpo várias vozes numa polifonia infernal que irradia todo o peso existencial do espetáculo.
Ao ver esta síntese entre animal e homem me veio, sem que o motivo eu saiba a imagem do antigo Lixão do Róger visto da antiga Casa da Pólvora. O céu ardia em cores que se transformavam a cada minuto. A fumaça das fogueiras dos montes de lixo e os urubus circulando a paisagem. Entre a contemplação e o espasmo, entre a vida e a morte, “Esparrela” é um dos espetáculos mais importantes da cena paraibana dos últimos tempos.

sábado, 25 de abril de 2009

A "romaria" de São Carrifêu



No terreno funcionava uma academia de tênis. Mas as raquetes foram aposentadas em pleno país do futebol. Assim, as quadras foram ficando ali, abandonadas, esquecidas, mato cobrindo tudo.
Surpreendeu todos os moradores do bairro universitário quando os caminhões foram despejando os operários, todos fardados de laranja, a cor da estação na capital. Alguns especulavam mais um posto de gasolina, outros não tinham a menor idéia do que poderia vir a ser construído. Grandes muros foram feitos para impedir que a curiosidade pública viesse atrapalhar o andamento das obras. No entanto, sondados, os operários entregaram o jogo, estão construindo sim as instalações de mais uma filial da de uma famosa rede de supermercados na zona sul da capital paraibana.
Da janela dos ônibus que cortam os Bancários e se dirigiam ao populoso bairro de Mangabeira, os passageiros puderam ver melhor que as obras progrediam. A estrutura de pré-moldados é despejada por carretas. Um imenso Lego vai ser montado por adultos e máquinas. Como um grande castelo de crianças, os vidros foram sendo colocadas, calçadas feitas, grandes etc. Agora, a população do bairro suspira e volta suas atenções para o grande dia da inauguração. “Tá perto, eles tão fazendo cera pra que fique perto do dia das mães”, confidenciou uma velha senhora, sempre confiável pelo seu talento para saber a veracidade de todo o tipo de boatos. Donos de padarias e mercadinhos já não dormem com medo da concorrência pesada que vem por aí.
Eis que o grande dia chegou. Um coquetel foi oferecido, mas a população ficou de fora porque era apenas para jornalistas e publicitários, formadores de opinião como garantia o release da empresa, divulgado nos jornais da cidade.
No dia seguinte, a romaria da gente “normal” começo logo cedo, amontoados na porta do estabelecimento, ansiosos, já começava a se criar animosidades na disputa por produtos eletro-eletrônicos pela metade do preço. Tevê de plasma, computador ou telefone celular, vai querer o quê? O sobe e desce das escadas rolantes apinhadas de gente lembra os parques de diversão. O estacionamento não comporta o grande número de carros dos fiéis mais abastados. O trânsito deve ser mudado em breve, pois tudo está um caos no antigo bairro dos estudantes universitários. E eis que para desespero de padres e pastores do lugar um novo culto se forma na zona Sul da cidade, um novo santo é louvado todos os dias por milhares de crentes. São Carrifêu é o nome dele. Francês, branco, de manto e olhos azuis para desespero ou alegria do presidente Lula. Os milagres do crédito superam a depressão da crise mundial, para o espanto dos estudiosos economistas e professores da UFPB, que trabalham logo ali e são vizinhos. Não sei até quando os estas coisas extraordinárias vão continuar acontecendo, não quero ser pessimista não...
Merece ser estudada a implantação da filial dessa famosa rede multinacional na zona sul da capital paraibana. Ótimas teses e dissertações nas áreas de antropologia do consumo ou sociologia das multidões sairiam dali, tudo milagre de São Carrifêu!

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Alice na periferia do capitalismo



-“Quem quer dinheirooooo?! Quem quer dinheirooooo?!”
O repetido grito de Sílvio Santos ecoa infinitamente no tedioso programa dominical. Frenéticas, como num esdrúxulo harém midiático, as mulheres se agitam, tentando chamar a atenção. Querem ser escolhidas para que o “comunicador” estoure ovos de galinha nas suas cabeças. Tudo por dinheiro.
O filme vencedor do Oscar “Quem quer ser milionário?” parece caminhar no mesmo terreno no qual o veterano brasileiro já trabalha há bastante tempo. Como numa espécie de show do milhão, vence quem responder corretamente todas as perguntas do todo-poderoso apresentador.
Desses dois universos midiáticos bem semelhantes, Índia e Brasil, pescamos algumas notícias recentes, veiculadas em jornais. Destacamos duas meninas, uma brasileira e outra indiana, duas Alices perdidas na periferia do capitalismo.
A primeira, a pequena atriz Rubina Ali, de nove anos, que interpretou a personagem Latika quando criança no filme “Quem quer ser milionário?”, que recentemente segundo o site britânico de notícias “News of the World”, foi posta a venda pelo pai por 200 mil Libras (R$ 647 mil). “Essa é uma criança especial agora. Ela não é uma criança qualquer, é uma criança vencedora do Oscar”, justifica o pai Rafiq, morador de uma favela de Mumbai.
A segunda é a pequena e irreverente Maísa Alves, apresentadora do “Sábado Animado”, que após mexer no cabelo do apresentador e dono do SBT Sílvio Santos comenta sem a menor cerimônia: “É peruca! Ele usa peruca!”. Enquanto isso, no intervalo, nos comerciais, a pequena atriz vende sandálias infantis, brinquedos e outros produtos associados à sua imagem. Com um contrato de fazer inveja aos brasileiros que ganham um salário mínimo, Maísa parece dizer o que quer no ar, ao conversar com o patrão Sílvio Santos. “Por que você não namora a Hebe, Sílvio?”
Separadas, miséria e esplendor, essas duas pequenas Alices não vivem em países maravilhosos, habitam a periferia do capitalismo em crise. Perderam o assombro e a ingenuidade da Alice original de Lewis Carroll (1832-1898), que ao seguir o Coelho Branco passa a vivenciar um mundo mágico no qual animais falam e outras coisas estranhas acontecem. A caminho das Índias, os dois contraditórios países se unem para além da óbvia tela da novela das oito. As duas meninas midiáticas são mercadorias vivas sem infância. No “maravilhoso” e midiático mundo da ilusão a palavra infância rima perfeitamente com infâmia.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Experimentando Bradbury


Não sei o que pode ter sido. Uma coincidência, um insight, um lapso ou qualquer outra coisa que aconteça sem a consciência rígida e observadora tente apreender com a razão. Assim foi o meu encontro com a obra do escritor norte-americano Ray Douglas Bradbury (1920-), considerado um dos grandes mestres da ficção científica mundial.
A coletânea de contos “Os frutos dourados do sol” (de 1953), publicada no Brasil pela Francisco Alves na coleção Mundos da Ficção Científica, impressiona por sua atualidade e principalmente pela voltagem de sua prosa poética.
O interessante é que na ficção científica de Bradbury existem naves espaciais, marcianos de verdade e estranhos seres dotados de poderes superiores sem que eles sejam o centro da narrativa, uma vez que sua matéria prima é o homem ocidental, suas contradições e desejos.
“Os frutos dourados do sol” juntamente com “O homem ilustrado” (1951) e as famosas “Crônicas marcianas” (1951) formam uma espécie de trilogia na qual Bradbury descortina todo seu humanismo em narrativas que impressionam por construir elementos para uma filosofia do homem em plena idade da máquina. O escritor Bradbury teve grande parte de sua produção lançada na década de ouro dos anos 50, mas não ficou preso a ela.
O mais o certo é que com a filmagem de uma adaptação do seu principal romance “Fahrenheit 451” em 1966 pelo cineasta François Truffaut, o livro adquiriu ares de cult às vésperas de uma grande revolta da juventude, como ocorreu em todo mundo em maio de 1968. O título “Fahrenheit 451” remete justamente à temperatura sob a qual os livros se incineram, história contada com maestria de um grande narrador da ficção cientifica mundial para mostrar que os livros foram proibidos por uma futura e alienante civilização que vive sob as ordens de telas de tv, na qual o indivíduo é reduzido ao nada. Tudo a ver com a realidade que sequer suspeitamos viver hoje. Assim, com suas estranhas profecias, o livro de Bradbury vai ser comparado a um dos grandes mestres da literatura humanista, Audous Huxley, autor de “Admirável mundo novo” (1932).
Talvez a glória literária alcançada com o filme e o livro “Fahrenheit 451” levou ao interiorano escritor norte-americano a estender sua carreira por décadas, sempre sendo descoberto por novos leitores, experimentado de forma diferente por diversas gerações. É que as lembranças, o pesadelo nuclear e os regimes totalitários irão sintomaticamente acompanhar o homem moderno em toda a sua vida. E as experiências vividas em Hiroshima e Nagasaki ou mesmo em campos de concentração nazi-russo-americanos como o de Auschwitz, Sibéria, Iugoslávia, Guantánamo. Assim, vale conseguir seu exemplar da coletânea dos melhores contos de Bradbury em “A cidade inteira dorme e outros contos“ (2008), recentemente publicado pela Editora Globo. E experimentar Bradbury um escritor em estado puro, contemporâneo...

segunda-feira, 30 de março de 2009

Bufões & assessores


Carlos Azevedo*
Em certo momento do primeiro ato da peça teatral “Esperando Godot” de Samuel Beckett (1906-1989) há uma estranha passagem em que a personagem Pozzo fala com Vladimir e Estragon afirmando o seguinte: “Vocês não são daqui. Vocês são só deste século. Antigamente as pessoas tinham bufões; agora temos assessores, isto é, quem pode” (p.57).
Só o teatro beckettiano para nos dar uma tão divertida e circense analogia entre a função monárquica dos bufões e a adoção pela república dos modernos assessores. Ambos vinculados ao poder, ao “quem pode”, desempenham funções aparentemente assimétricas ou divergentes. O primeiro esforça-se para divertir o Rei em períodos difíceis e o segundo tenta que seu assessorado não passe por eles.
Os humoristas são os descendentes diretos dos bufões de antigamente. Invadem os espaços midiáticos e teatrais para levar diversão não ao Rei, mas sim aos exigentes espectadores que anseiam por uma sátira justamente ao poder ou aos poderes. Se eu fosse político, me valeria de muitos assessores humoristas, pois hoje o que se vê hoje nas colunas dos jornais é mais uma verdadeira troca de farpas entre emboladores de côco do que uma discussão dos importantes problemas nacionais. O ser político passa pela capacidade “criativa” de se dizer asneiras em público, a exemplo das seguidas gafes do presidente Lula ao tentar vincular a crise financeira mundial aos olhos azuis dos banqueiros. Assim, atenção nobres deputados da terrinha ou ocupantes do executivo, na hora de contratar seus assessores é bom dar uma checada nos cachês de um talentoso Zé Paraíba ou de um engraçado Cristovam Tadeu. Quem pode mais contrata um Chico Anysio, um mestre no assunto.
A figura do Bufão tornou-se cada vez mais técnica na república. Desvinculado da obrigação de ser engraçado, o assessor-bufão mete-se numa veste que imita o assessorado e sua função é adivinhar como o seu chefe pensa em períodos de tormenta. A alguns deles é até dada a liberdade de falar em nome do seu patrão quando faltam as palavras ao mesmo. São de confiança do poder, agarram-se nele como beatas a um encardido terço.
Os bufões modernos nem precisam ler “O príncipe” de Maquiavel. O maquiavelismo já lhes corre nas veias como um embriagante vinho tinto. Também não precisam ler um teórico das elites como Wright Mills para perceberem que a saudável alternância de poder é apenas uma triste brincadeira de roda gigante, um sobe e desce das mesmas figurinhas carimbadas.
Bruzundangas, esses bufões modernos se garantem nas suas ridículas funções “altamente técnicas e especializadas”. São risíveis em sua cretinice, mas são admiráveis no senso de praticidade.
Bufões modernos, esses espertalhões sem máscara nem nariz vermelho, povoam o poder como pulgas num cachorro morto.
* Jornalista e professor de Comunicação Social/UEPB

segunda-feira, 9 de março de 2009

Jambeiros


Os jambeiros desenham na cidade uma vez por ano um tapete de uma cor que para mim era imprecisa até hoje. Não havia palavras para descrever aquela intensidade, quase um sentimento que não podia ser transposto para o verbal.
De frondosa copa, delicadamente os jambeiros preparam silenciosamente na sombra de suas capelas a floração que, quase como um milagre, cai dos céus como uma colorida “neve” tropical que tanto seduz as crianças e adultos até hoje.
É nessa relação de transfiguração do cromatismo da natureza em conjunto com os movimentos do Ser que encontramos a poética de Vitória Lima, autora de “Fúcsia” (Edições linha d´água,2007). A capa do livro, assinada por Tiago de Lima Gualberto trabalha a linda e precisa aquarela de desenho naturalista de Maria Zélia Pessoa, que se intitula “Myrtaceae Jambosa Malaccensis DC”, representando todas as partes do jambeiro.
Os pés de jambo já quase não existem na abandonada Lagoa, em João Pessoa, são imagens de um passado distante, como os quadros de Flávio Tavares. Os jambeiros e suas cores, matizes entre o marrom do tronco ao verde escuro das folhas, chegando à fúcsia das flores que vão se transformar em frutos... sim, bem que podiam compor alguma narrativa sagrada. No poema “Primeiro beijo” (p.61), Vitória Lima faz esta aproximação: “foi em campina/na feira de fruta/que desfrutamos/o nosso primeiro/beijo//parados sob a marquise,/sombrinha aberta/saboreamos/ aquela exótica fruta/embarcada/diretamente/do paraíso (...)”
O livrinho saído do forno pela mão do talentoso artista gráfico e professor Pontes da Silva foi lançado a cerca de dois anos atrás, num discreto evento, no Parahyba Café de Bob Záccara, na antiga estação de trens, no começo da Epitácio Pessoa. Explico aqui a razão do atraso em quase duas estações de jambo em comentar tal publicação. Lembro que por motivos superiores não demorei no lançamento, comprei meu exemplar e voltei logo de ônibus para casa. No coletivo, não tinha a menor intenção em ler o livro. Mas a curiosidade me fez provar de um único jambo/poema e rapidamente, um por um, foram sendo devorados e, ao final da viagem, o livro já tinha sido deliciosamente lido. Uma leitura de vinte e poucos minutos pelas ruas da antiga cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves. Assim, não queria me desprender de tão inesperada leitura. Mas o tempo me fez compartilhar com vocês tal experiência...
Destaco ainda o poema “Fúcsia” que dá título ao livro: “da paleta dos jambeiros/sai o fúcsia que/ pinta e borda/ as calçadas dos setembros” (p.21). “Fúcsia” de Vitória Lima traz com sensibilidade toda uma construção de cores, sentidos e estações que sintonizam os poemas na natureza e para além dela, colorindo com tons e gestos o penoso passar dos dias e a implacável “tesoura do tempo” (p.67) que sintomaticamente compõe o poema “THE END” ao fim do delicioso último pedaço do jambo.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Carta ao Luíz


Carlos Azevedo*
Outro dia, encontrei o professor Luíz no saguão do aeroporto, em João Pessoa. Era madrugada, eu me dirigindo ao interior de São Paulo e ele, com certeza, indo para Brasília para dar expediente no dia seguinte, no Congresso Nacional. Cochilava e por certo aquela viagem ao centro do país chamado Brasil fisicamente o desgastava por mil vezes. Tive receio de cumprimentá-lo, de atrapalhar seus pensamentos ou mesmo seu breve descanso naquele momento.
Entre um cochilo e outro, ele me olhou. Talvez tivesse lembrado daquela face. De onde conheço aquele outro senhor que ali também espera o tedioso momento do embarque?
Os anos se passaram Luíz. E o que eu queria apenas te dizer naquele momento é que as árvores que você plantou na Praça da Alegria da UFPB cresceram. Confesso que no início, logo quando você as plantou não tive muita fé que elas fossem vingar, talvez pisoteadas pelas manadas desatentas de selvagens estudantes. Mas a fé floresce hoje nos corredores da universidade, em João Pessoa. A sombra boa já acolhe os grupos que alegremente conversam de tudo por lá.
Naquele tempo, de árduas militâncias no Partido dos Trabalhadores e no movimento estudantil, sabia que podia contar com seu apoio e experiência como diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Mas o tempo te encaminhou para tarefas mais difíceis ainda. E te distanciaram da sala de aula, do convívio com os estudantes e professores, do convívio com os fiéis na Igreja. Tarefas históricas de um tempo que clamava por mudanças radicais. E não bastava ser apenas professor ou padre. Mas sei que sentes saudades e nunca abandonastes por completo nenhuma das duas missões.
Hoje tua missão é mais árdua. Acompanho-te pelos jornais. Combates com toda a tua força e coragem o crime organizado que se infiltrou por todos os poderes e esferas deste país. E corre o risco de ser perseguido e morto, inocente cordeiro, tal qual Cristo. Mas segues teu caminho com honra, coragem e fé.
Pois é professor, li que alguém, o qual não se pode nem pronunciar o nome, autoritariamente quer te tirar o sagrado direito de celebrar a vida, seja na universidade, na Igreja ou na tribuna.
Segue teu caminho como homem honrado, assim como fez o nosso Dom Hélder, clamando por justiça num país injusto. Empunha teu mandato popular conquistado nas urnas e celebrado na comunhão dos homens simples. E lembra que muitos te reconhecem pelas árvores, pela fé, pelos amigos que cultivas e pela coragem de fazer deste lugar chamado Brasil uma utopia pulsante e viva, apesar de tudo.

* Jornalista, professor de Comunicação Social da UEPB

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Rizoma


Era apenas um pequeno e murcho ramo de cor lilás solto na calçada. Sob o sol não duraria mais que dois dias. Olhei para o meu filho e me abaixei para apanhar o pedaço de planta agonizante. Fiz sem pensar e ele notou isto. Mas plantar onde papai? Silêncio.
Chegando a casa, providenciei alguma vasilha para provisoriamente colocar na água o pedaço de planta, com a suspeita que ele não agüentaria. Para minha surpresa, no outro dia, logo ao amanhecer, algumas flores de um delicado rosa brotaram por entre as folhas. Talvez um sinal da planta, na sua luta pela sobrevivência. Ou um gesto de agradecimento?
A partir daí, as mudanças vão se operando rapidamente. Algumas folhas já desgastadas pela luta vão cedendo lugar, Novos brotos vão surgindo. E um dos galhos já esboça duas folhas verdinhas, lá bem no alto, destemido tal um cume de uma montanha. Só agora me lanço com atenção ao transparente vaso. Inversamente, mergulhados na vasilha, muitas raízes e pequenos rizomas desenham uma cabeleira, procurando terra, buscando um chão, sobrevivência.
O silencioso trabalho da natureza já me faz pensar em comprar jarro e terra para acomodar a mais nova habitante da casa. Já não é mais um pedaço de planta, talvez ganhe algum espaço logo no meio da mesa.
Este inesperado diálogo com o mundo vegetal me faz lembrar um pequeno texto de dois grandes pensadores de nosso tempo, Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores do livro “Mil platôs- capitalismo e esquizofrenia”. Trata-se de “Rizoma”, que na edição brasileira está no primeiro volume. Nele, os dois filósofos tomam emprestado da biologia a noção de rizoma e mostram como o conhecimento é construído em forma de ramos, árvores. “A árvore já é a imagem do mundo, ou a raiz é a imagem da árvore-mundo” (p.13) Assim, a lógica da árvore está presente na Psicologia, na informática e na Lingüística etc. Os dois pensadores querem sair dessa lógica binária e partir para a multiplicidade, como rizomas que se multiplicam em pequenas radículas que compõem o balé vegetal imprevisto da vida na Terra.
Num mundo em que tudo está conectado é possível se pensar hoje na multiplicidade de uma humanidade ligada/desligada em mil platôs, redes complexas abarcam comportamentos, pensamentos e mobilizações. Um mundo rizomático no qual tudo está interligado, como no filme “Babel” (da trilogia “Amores Brutos” e “21 gramas”, do diretor Alejandro González Iñárritu) mesmo que muita gente não tenha consciência disto.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Linha de passe


Inutilmente as mãos são levantadas e dirigidas ao céu. Cenas se misturam, num caótico balé de mãos no qual se fundem os braços de torcedores e fiéis. Mãos indefinidas que clamam um não sei o quê, mas essas imagens parecem tecer os fios narrativos do filme “Linha de passe” (2008), dos cineastas Walter Salles e Daniela Thomas. Um filme sobre o Brasil, sobre fé, sobre futebol...enfim, tudo isso junto.
Os pés que chutam a bola, que dão o passe, no glamour da primeira divisão num estádio ou no campinho de barro na periferia. Pés calejados que também percorrem o cinza claro ou escuro de São Paulo, tão bem captado pela fotografia de Mauro Pinheiro Jr. Entre a chuteira desgastada, o tênis adidas do bói ou a bota encardida do operário, os pés percorrem as linhas imaginárias da cidade, linhas que dividem a riqueza e o esplendor de uma Avenida Paulista do resto dos lugares esquecidos pelo discurso de cidadania dos governantes. Linha que demarca o pênalti, o momento decisivo, o perde ou ganha. Linha de passe, em que a arte se completa como um todo, no qual um dá uma chance ao outro, cedendo a frágil possibilidade de marcar o gol.
Ao terminar de assistir o filme nos dá a impressão que se passaram mais de três horas, devido à repetição do penoso cotidiano da metrópole paulista, sempre visto a partir da periferia, como se o filme fosse construído pela oscilação entre a repetição da brutal rotina e sua sutil diferença, gerando no espectador uma tensão, uma esperança de gol ou de melhora nas condições de vida. É como se fossemos forçados apesar da crise a também a acreditar, a ter fé, levantar as mãos como babacas torcedores e fiéis, sórdidos autômatos humanos, habitantes do país do futebol a espera de um milagre.
Não é a toa que a personagem principal de “Linha de passe” é a diarista Cleuza (interpretada por Sandra Corveloni), de 42 anos, mãe de quatro filhos e grávida do quinto, que torce fielmente pelo clube Corínthians. O futebol do filme não se desenrola no campo, mas sim na vida cotidiana. É como se o jogo ou o culto fossem metáforas desgastadas da vida, apenas espetáculos catárticos. O verdadeiro futebol de “Linha de passe” vem nos dribles feitos no trânsito da metrópole pelo motoboy Dênis, filho mais velho. Ou na busca obstinada de Reginaldo, o filho mais novo que procura o pai que nunca conheceu. Ou no “craque” Dário, filho que está prestes a completar 18 anos, estando excluído tanto do futebol quanto do mercado de trabalho. Ou no evangélico Dinho, também filho de Cleuza, que hesita em sua fé mas tenta seguir a impossível linha, num caminhar frenético.
“Linha de passe” é mais um retrato profundo do Brasil pelas lentes de Walter Salles, dessa vez dividindo com Daniela Thomas o olhar sobre um país marcado pelas contradições de uma modernidade conservadora, numa metrópole como São Paulo. Longe de ter uma estética roliúdiana ou de um melodrama televisivo comum, o filme inspira-se primordialmente num gesto documental, como se num precioso momento a ficção conseguisse de maneira estranha tocar e nos mostrar uma significativa parte de nossa difícil realidade.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Jornalismo cultural e academias


A Paraíba vem ganhado em recentes momentos várias organizações de caráter privado na área cultural, principalmente academias nos campos de música e cinema. No entanto, parece mais que urgente também uma breve reflexão global sobre o significado de tais agrupamentos que se intitulam Academias e que congregam na área de cultura significativos nomes da cena paraibana.
O berço das Academias é a Grécia Antiga. Em suas origens, em grandes jardins públicos, Platão reunia-se com seus discípulos e discutia de tudo. Depois, o termo Academia teve seu sentido ampliado, passando a dar sentido a toda reunião de pessoas nas diferentes esferas (científica cultural etc.). No Renascimento, as academias tiveram seu apogeu, chegando inclusive a rivalizar com as universidades. No Brasil, a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi fundada em 1897 por Machado de Assis e tem no escritor seu principal patrono. O organismo nasceu pobre, sem recursos, mas hoje congrega não só literatos também toda a espécie de gente endinheirada que sente necessidade de projeção social, reconhecimento público.
Na Paraíba, parece ocorrer o mesmo que acontece com a ABL. Recentemente, um candidato que não possuía sequer um livro publicado recorreu ao prelo rápido para na imprimir em caráter de urgência seus versos menores às vésperas da eleição. Retiradas espaços de ar puro dos jardins platônicos e transformadas num ambiente de irrespirável mofado dos gabinetes contemporâneos, tais instituições que se proclamam de Academias parecem se alimentar do seu próprio anacronismo. Sob a sombra do poder, tais academias aparentemente administram a economia simbólica das vaidades e dos rancores. As academias carregam dentro de si as próprias contradições do sistema cultural, no que pese o empobrecimento da experiência estética e o rebaixamento daquilo que alguns chamam de literatura.
Ao mesmo tempo, parece se vislumbrar em alguns momentos uma renovação nas academias com da candidatura de alguns escritores-jornalistas, notadamente do jornalismo cultural. Num momento em que os cadernos culturais do Estado sequer conseguem cobrir a agenda do que acontece na Paraíba seria também importante se discutir tal editoria que enfrenta uma crise de espaço e de qualidade. Acuados e consumidos pelo colunismo social, esse jogo de dar importância social a quem realmente não tem, o jornalismo cultural junto com seus editores administram o prejuízo, restando apenas informar o horário do filminho norte-americano ou o lugar da peça caça-níquel global.
Caberia perguntar se a trincheira cultural não sairia mais contemplada com a retomada de um jornalismo cultural crítico nos periódicos paraibanos do que um ou outro jornalista-escritor sonhar com a tão enganosa imortalidade? Caberia também às próprias academias se repensarem não como espaços de vaidade, mas de formação e transmissão de conhecimento na sociedade da informação?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Por onde andará Fransued do Vale?


Em plena João Pessoa de 1997, alguns gatos pingados & pirados resolveram criar uma pequena editora chamada Trema para publicar os novos poetas paraibanos, muitos deles inéditos. A iniciativa era pra lá de oportuna, gerida pelos poetas Antônio Mariano Lima, André Ricardo Aguiar e José Caetano.
O desafio era de criar um projeto editorial marginal no fim da década de 90. O objetivo, na voz dos próprios editores, era o de inaugurar um circuito alternativo na literatura paraibana no qual autor e editora trabalhariam coletivamente da composição à encadernação do livro. A razão era simples, buscava-se baratear os custos da obra através de um livro de bolso, com tiragem limitada, em torno de 200 exemplares. Para os grandes sabichões da cultura oficial local, a Trema era uma loucura. O tempo provou que não, uma vez que hoje todas as grandes editoras brasileiras tem o seu lado "pocket", seja a consagrada Companhia das Letras, a Record ou até mesmo a gaúcha L&PM.
Abrindo a coleção Registro da editora Trema veio a luz um livrinho pequeno mesmo. "Um certo oriente- quase haicais quase tankas" de um poeta de nome Fransued do Vale. Muita gente pensou que Fransued do Vale fosse um pseudônimo ou que o cara nem existisse mesmo. Nascido no interior do Piauí e residente em João Pessoa desde 1977, o arte-educador Fransued do Vale era figura presente na cena cultural, uma vez que cantava no coral Voz Ativa, do maestro Luís Carlos.
O livro era quase dado ao preço de três Reais. O que o leitor não sabia é que com a publicação de "Um certo oriente" a editora Trama colocaria nas suas mãos um dos melhores poetas haicaistas paraibanos, seguindo a trilha aberta por Saulo Mendonça, em "Libelula 100 haikais", de 1990. Seguindo o modelo poético minimalista oriental do zen budismo, no qual tudo deve ser dito em três linhas, Fransued já se mostrava maduro em seu primeiro livro, com poemas do tipo: "passos no caminho:/na redondeza do ser/ pés de passarinho" (p.24).
O tempo passou, a editora deixou de existir e até o livrinho esgotou. Conheci Fransued no dia em que ele me vendeu o livro. Tempos depois, já em 2001, o poeta traz ao público um novo livro "Meditatio", desta vez pela editora Manufatura, do escritor, editor e professor Barreto. No seu segundo livro, o poeta não muda de dicção nem vai deixar sua marca principal que é o texto curto, bem elaborado, com imagens sintéticas, no sentido de uma poesia que tem na expressão máxima na filosofia do zen budismo.
Pouco lembrado pelos construtores do cânone literário do Estado, Fransued do Vale é um dos principais poetas paraibanos contemporâneos, devendo ser lido e estudado nos cursos de Letras da Paraíba. Mais de uma década depois da publicação de "Um certo oriente",por andará o poeta Fransued do Vale?

domingo, 25 de janeiro de 2009

CARNE E PEDRA




O vulcão Vesúvio com seus dois cumes adormecidos parece ainda lembrar que as cidades são feitas de carne e pedra. Suas erupções construíram as ruínas de Pompéia, nas quais seres humanos foram convertidos tragicamente em estátuas de larva que representam as forças mais ocultas, misteriosas e destrutivas da natureza.
Mas não é do vulcão Vesúvio e suas grandes erupções que acontecem desde 79 d.C. que queremos falar, mas sim de um livro que já pode ser considerado um dos mais elegantes textos sobre a vida na cidade através da história. Em “Carne e Pedra- o corpo e a cidade na civilização ocidental” (Bestbolso,2008) o sociólogo Richard Sennett conduz o leitor num passeio que vai da Grécia antiga até Nova Iorque contemporânea, através de uma escrita que funde erudição e didatismo.
Richard Sennett nasceu em Chicago em 1943 e é professor da London School of Economics e da Universidade de Nova Iorque, sendo autor também de outro livro bem discutido nos meios universitários, “O declínio do homem público”, por sinal, esgotadíssimo. Ele escreveu também “A corrosão do caráter” e “Autoridade”.
O ambicioso projeto de “Carne e Pedra”, nas palavras do próprio autor é “uma história da cidade contada por meio da experiência corporal do povo: como mulheres e homens se moviam, o que viam e ouviam, os odores que penetravam em suas narinas, onde comiam, seus hábitos de vestir, de banhar-se e de que forma faziam amor, desde Atenas antiga até Nova York atual”.
Claro que Sennett não ignorou que muito já se tem de escritos sobre o fenômeno, em especial o clássico “A cidade na História”, do filósofo social e urbanista norte-americano Lewis Munford (1890-1990), que recontou os quatro mil anos de aventura humana na construção da vida na cidade. Os objetivos dele eram outros, nem tão amplos. “Estudei algumas cidades em momentos específicos, marcados pela eclosão de guerras ou revoluções, a inauguração de um monumento, o anúncio de uma descoberta médica ou a publicação de uma obra, que tenham assinalado significativamente as relações entre as experiências corporais e os espaços que as pessoas viviam” (p.20).
Assim, ao relacionar corpo e cidade, carne e pedra, Sennett vai de certa forma continuar o diálogo com seu famoso amigo intelectual Michel Foucault (1926-1984), autor de clássicos como “Vigiar e Punir” (1975) e “História da Sexualidade” (1976-1984). A circulação no corpo da cidade, suas artérias, suas veias, o centro urbano pulsante como um coração são analogias que o autor vai construir no livro. O privilégio de degustar página por página, como num passeio feito com os olhos no texto de um dos mais eruditos pensadores contemporâneos só pode ser comparado à experiência de contemplar do alto, pela primeira vez, uma metrópole como São Paulo. A experiência de pedra que fica marcada na carne.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Meditação sobre Dom Hélder


O livrinho de 73 páginas parecia adormecido num canto da estante. É que não queria lê-lo em meio a atividades de trabalho, misturá-lo com outros assuntos, apesar de sua pouca extensão. Eis que há tempo para tudo e, neste início de 2009, me lanço em um único dia na leitura de “Dom Helder Câmara- MeditAções pela integridade da Criação” (Editora Sal da Terra,2008), de autoria de Flávio Rocha.
Antes de entrar no livro em si, gostaria de contar o porquê do meu interesse em Dom Helder. Na década de 90, quando iniciava minha carreira como jornalista em O Norte, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, o editor chefe comentou que o jornal iria mandar um repórter para entrevistar o religioso no mosteiro, em Olinda. Na minha vaidade de leitor voraz, tentei convencê-lo que eu seria a pessoa mais indicada e até mais capacitada para entrevistar Dom Helder, uma vez que já conhecia alguns livros dele. Não adiantou, o chefe mandou uma jornalista que comentou comigo assim: “Olha, vou pra Olinda, com carro, motorista e fotógrafo entrevistar um tal de Dom. Nome esquisito pra uma pessoa, não achas?”. Prevendo a repercussão desastrosa da entrevista, fiquei ansioso. No entanto, a sensibilidade de Dom Helder discretamente notou que a moça não sabia distinguir um padre de um bispo. E, mesmo assim, ele a ajudou, com uma paciência de Jó. Uma lição de humildade para todos.
Pois bem, o livro de Flávio Rocha é resultado de seus estudos em nível de mestrado na University of Creation Spiritualy- Naropa University, nos Estados Unidos. Escrito numa linguagem simples e intercalando várias poesias de autoria de Dom Hélder, a publicação nos apresenta de forma resumida toda a trajetória de ação desse homem que é considerado um dos principais nomes da Teologia da Libertação no Brasil.
O Dom Hélder que vamos encontrar no livro de Flávio Rocha vai surpreender muita gente uma vez que o autor enfatiza a articulação entre a ação política e a meditação, numa curiosa simbiose entre defesa dos oprimidos e misticismo. Vamos encontrar um homem simples, de hábitos discretos que tem verdadeira paixão pelas plantas de seu jardim e vê na natureza uma forma de contato com Deus, sem que isso o impeça de sentir e lutar contra o sofrimento dos mais pobres.
Por que não pensar numa ponte ecumênica entre Dom Hélder e o monge budista vietnamita Thich Nhât Hanh, autor de “Meditação andando” e “Flamboyant em chama- rumo ao sol”? É que os dois não se ausentaram da responsabilidade para com o outro sem também se absterem do poder da meditação no que se refere à ligação com a natureza/divindade.
O mérito do livro de Flavio Rocha vem num poema do próprio Dom Hélder: “Não creia na força de quem bajula os fortes/ e de quem humilha os fracos./De quem não sorri de crianças brincando,/de quem não tem olhos para a beleza/ e é incapaz de parar, mesmo na maior pressa,/para contemplar uma flor.”

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A ilha perdida


(Para Catarina, minha mãe)
Sob a névoa do esquecimento, inutilmente tento traçar uma história pessoal das primeiras experiências como leitor. Como um hesitante filme rodado em super 8, algumas imagens sem edição rondam a cabeça. O jardim da casa velha, no bairro do Róger, em João Pessoa. O menino estranhamente feliz lendo o livrinho de capa azul, da Editora Ática, coleção Vagalume. Seria “A ilha perdida” ou “O segredo de Taquarapoca”?
Toda vez que tento formar essa imagem mais elaborada sobre o assunto me vem na cabeça outra leitura, dessa vez do adulto. É que me lembro do conto de Clarice Lispector chamado “Felicidade clandestina”, que se passa no Recife, no qual uma pequena garota se delicia ao finalmente conseguir ler um livro infantil mesmo que emprestado. Sim, essa estranha alegria que se compara ao descobrimento de um lugar paralelo nunca antes visto, o mundo dos livros e de suas histórias, pode ser chamada provisoriamente de “felicidade clandestina”.
Como num filme, os nexos temporais são outros e me vejo entrando na universidade, em fins da década de 80. Lembro do estágio na área de Cultura do Sesc de João Pessoa, das deliciosas leituras de literatura brasileira sempre facilitadas pelo prestimoso auxílio da bibliotecária Mara. Descobrindo o universo do conto do escritor Rubem Fonseca, devorando também seus romances como “A grande arte” ou “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. Ou saboreando a crônica de outro Rubem, o Braga, no “O conde e o passarinho”.
Uma história pessoal da leitura também passa pelas idas e vindas aos Sebos e livrarias. Como não se lembrar da livraria do Coronel Albertino, quase no fim da Rua da República. Sentado num tamborete, se refestelando com um prato de macaxeira com carne de porco e bebendo vinho Jurubeba ele atendia o menino em seu passeio pela João Pessoa antiga. Ou do Sebo Cultural de Heriberto Coelho, quando ainda era situado no centro, numa casa antiga, com quartos e mais quartos cheios de livros, nos fundos de uma igreja barroca. Foi ali que conheci os livros de João Antônio, com seus títulos esquisitos: “Malhação de Judas Carioca” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Ao lado da sede da Associação Paraibana de Imprensa (API), na Visconde de Pelotas de minha cabeça ainda posso perfeitamente entrar na Livro 7 e ser atendido por Roberto ou na Galeria Augusto dos Anjos de meu pensamento posso passar pela sortida Livraria do Luiz e perguntar sobre aquele lançamento ao Josélio.
E aquela coleção completa de Balzac que o beat João Henrique da Livraria Paidéia tinha? E aqueles livros que desejei comprar e não pude? É assim, aos pedaços, de forma incompleta e subjetiva, que se constrói uma história da leitura, como um vaga-lume perdido na escuridão. Assim, pessoas, personagens, enredos, lugares, títulos se misturam ou se apagam com o tempo, tal qual o filme “Coração de tinta”. Como não se lembrar dos labirintos de Borges?