sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Jornalismo cultural e academias


A Paraíba vem ganhado em recentes momentos várias organizações de caráter privado na área cultural, principalmente academias nos campos de música e cinema. No entanto, parece mais que urgente também uma breve reflexão global sobre o significado de tais agrupamentos que se intitulam Academias e que congregam na área de cultura significativos nomes da cena paraibana.
O berço das Academias é a Grécia Antiga. Em suas origens, em grandes jardins públicos, Platão reunia-se com seus discípulos e discutia de tudo. Depois, o termo Academia teve seu sentido ampliado, passando a dar sentido a toda reunião de pessoas nas diferentes esferas (científica cultural etc.). No Renascimento, as academias tiveram seu apogeu, chegando inclusive a rivalizar com as universidades. No Brasil, a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi fundada em 1897 por Machado de Assis e tem no escritor seu principal patrono. O organismo nasceu pobre, sem recursos, mas hoje congrega não só literatos também toda a espécie de gente endinheirada que sente necessidade de projeção social, reconhecimento público.
Na Paraíba, parece ocorrer o mesmo que acontece com a ABL. Recentemente, um candidato que não possuía sequer um livro publicado recorreu ao prelo rápido para na imprimir em caráter de urgência seus versos menores às vésperas da eleição. Retiradas espaços de ar puro dos jardins platônicos e transformadas num ambiente de irrespirável mofado dos gabinetes contemporâneos, tais instituições que se proclamam de Academias parecem se alimentar do seu próprio anacronismo. Sob a sombra do poder, tais academias aparentemente administram a economia simbólica das vaidades e dos rancores. As academias carregam dentro de si as próprias contradições do sistema cultural, no que pese o empobrecimento da experiência estética e o rebaixamento daquilo que alguns chamam de literatura.
Ao mesmo tempo, parece se vislumbrar em alguns momentos uma renovação nas academias com da candidatura de alguns escritores-jornalistas, notadamente do jornalismo cultural. Num momento em que os cadernos culturais do Estado sequer conseguem cobrir a agenda do que acontece na Paraíba seria também importante se discutir tal editoria que enfrenta uma crise de espaço e de qualidade. Acuados e consumidos pelo colunismo social, esse jogo de dar importância social a quem realmente não tem, o jornalismo cultural junto com seus editores administram o prejuízo, restando apenas informar o horário do filminho norte-americano ou o lugar da peça caça-níquel global.
Caberia perguntar se a trincheira cultural não sairia mais contemplada com a retomada de um jornalismo cultural crítico nos periódicos paraibanos do que um ou outro jornalista-escritor sonhar com a tão enganosa imortalidade? Caberia também às próprias academias se repensarem não como espaços de vaidade, mas de formação e transmissão de conhecimento na sociedade da informação?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Por onde andará Fransued do Vale?


Em plena João Pessoa de 1997, alguns gatos pingados & pirados resolveram criar uma pequena editora chamada Trema para publicar os novos poetas paraibanos, muitos deles inéditos. A iniciativa era pra lá de oportuna, gerida pelos poetas Antônio Mariano Lima, André Ricardo Aguiar e José Caetano.
O desafio era de criar um projeto editorial marginal no fim da década de 90. O objetivo, na voz dos próprios editores, era o de inaugurar um circuito alternativo na literatura paraibana no qual autor e editora trabalhariam coletivamente da composição à encadernação do livro. A razão era simples, buscava-se baratear os custos da obra através de um livro de bolso, com tiragem limitada, em torno de 200 exemplares. Para os grandes sabichões da cultura oficial local, a Trema era uma loucura. O tempo provou que não, uma vez que hoje todas as grandes editoras brasileiras tem o seu lado "pocket", seja a consagrada Companhia das Letras, a Record ou até mesmo a gaúcha L&PM.
Abrindo a coleção Registro da editora Trema veio a luz um livrinho pequeno mesmo. "Um certo oriente- quase haicais quase tankas" de um poeta de nome Fransued do Vale. Muita gente pensou que Fransued do Vale fosse um pseudônimo ou que o cara nem existisse mesmo. Nascido no interior do Piauí e residente em João Pessoa desde 1977, o arte-educador Fransued do Vale era figura presente na cena cultural, uma vez que cantava no coral Voz Ativa, do maestro Luís Carlos.
O livro era quase dado ao preço de três Reais. O que o leitor não sabia é que com a publicação de "Um certo oriente" a editora Trama colocaria nas suas mãos um dos melhores poetas haicaistas paraibanos, seguindo a trilha aberta por Saulo Mendonça, em "Libelula 100 haikais", de 1990. Seguindo o modelo poético minimalista oriental do zen budismo, no qual tudo deve ser dito em três linhas, Fransued já se mostrava maduro em seu primeiro livro, com poemas do tipo: "passos no caminho:/na redondeza do ser/ pés de passarinho" (p.24).
O tempo passou, a editora deixou de existir e até o livrinho esgotou. Conheci Fransued no dia em que ele me vendeu o livro. Tempos depois, já em 2001, o poeta traz ao público um novo livro "Meditatio", desta vez pela editora Manufatura, do escritor, editor e professor Barreto. No seu segundo livro, o poeta não muda de dicção nem vai deixar sua marca principal que é o texto curto, bem elaborado, com imagens sintéticas, no sentido de uma poesia que tem na expressão máxima na filosofia do zen budismo.
Pouco lembrado pelos construtores do cânone literário do Estado, Fransued do Vale é um dos principais poetas paraibanos contemporâneos, devendo ser lido e estudado nos cursos de Letras da Paraíba. Mais de uma década depois da publicação de "Um certo oriente",por andará o poeta Fransued do Vale?

domingo, 25 de janeiro de 2009

CARNE E PEDRA




O vulcão Vesúvio com seus dois cumes adormecidos parece ainda lembrar que as cidades são feitas de carne e pedra. Suas erupções construíram as ruínas de Pompéia, nas quais seres humanos foram convertidos tragicamente em estátuas de larva que representam as forças mais ocultas, misteriosas e destrutivas da natureza.
Mas não é do vulcão Vesúvio e suas grandes erupções que acontecem desde 79 d.C. que queremos falar, mas sim de um livro que já pode ser considerado um dos mais elegantes textos sobre a vida na cidade através da história. Em “Carne e Pedra- o corpo e a cidade na civilização ocidental” (Bestbolso,2008) o sociólogo Richard Sennett conduz o leitor num passeio que vai da Grécia antiga até Nova Iorque contemporânea, através de uma escrita que funde erudição e didatismo.
Richard Sennett nasceu em Chicago em 1943 e é professor da London School of Economics e da Universidade de Nova Iorque, sendo autor também de outro livro bem discutido nos meios universitários, “O declínio do homem público”, por sinal, esgotadíssimo. Ele escreveu também “A corrosão do caráter” e “Autoridade”.
O ambicioso projeto de “Carne e Pedra”, nas palavras do próprio autor é “uma história da cidade contada por meio da experiência corporal do povo: como mulheres e homens se moviam, o que viam e ouviam, os odores que penetravam em suas narinas, onde comiam, seus hábitos de vestir, de banhar-se e de que forma faziam amor, desde Atenas antiga até Nova York atual”.
Claro que Sennett não ignorou que muito já se tem de escritos sobre o fenômeno, em especial o clássico “A cidade na História”, do filósofo social e urbanista norte-americano Lewis Munford (1890-1990), que recontou os quatro mil anos de aventura humana na construção da vida na cidade. Os objetivos dele eram outros, nem tão amplos. “Estudei algumas cidades em momentos específicos, marcados pela eclosão de guerras ou revoluções, a inauguração de um monumento, o anúncio de uma descoberta médica ou a publicação de uma obra, que tenham assinalado significativamente as relações entre as experiências corporais e os espaços que as pessoas viviam” (p.20).
Assim, ao relacionar corpo e cidade, carne e pedra, Sennett vai de certa forma continuar o diálogo com seu famoso amigo intelectual Michel Foucault (1926-1984), autor de clássicos como “Vigiar e Punir” (1975) e “História da Sexualidade” (1976-1984). A circulação no corpo da cidade, suas artérias, suas veias, o centro urbano pulsante como um coração são analogias que o autor vai construir no livro. O privilégio de degustar página por página, como num passeio feito com os olhos no texto de um dos mais eruditos pensadores contemporâneos só pode ser comparado à experiência de contemplar do alto, pela primeira vez, uma metrópole como São Paulo. A experiência de pedra que fica marcada na carne.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Meditação sobre Dom Hélder


O livrinho de 73 páginas parecia adormecido num canto da estante. É que não queria lê-lo em meio a atividades de trabalho, misturá-lo com outros assuntos, apesar de sua pouca extensão. Eis que há tempo para tudo e, neste início de 2009, me lanço em um único dia na leitura de “Dom Helder Câmara- MeditAções pela integridade da Criação” (Editora Sal da Terra,2008), de autoria de Flávio Rocha.
Antes de entrar no livro em si, gostaria de contar o porquê do meu interesse em Dom Helder. Na década de 90, quando iniciava minha carreira como jornalista em O Norte, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, o editor chefe comentou que o jornal iria mandar um repórter para entrevistar o religioso no mosteiro, em Olinda. Na minha vaidade de leitor voraz, tentei convencê-lo que eu seria a pessoa mais indicada e até mais capacitada para entrevistar Dom Helder, uma vez que já conhecia alguns livros dele. Não adiantou, o chefe mandou uma jornalista que comentou comigo assim: “Olha, vou pra Olinda, com carro, motorista e fotógrafo entrevistar um tal de Dom. Nome esquisito pra uma pessoa, não achas?”. Prevendo a repercussão desastrosa da entrevista, fiquei ansioso. No entanto, a sensibilidade de Dom Helder discretamente notou que a moça não sabia distinguir um padre de um bispo. E, mesmo assim, ele a ajudou, com uma paciência de Jó. Uma lição de humildade para todos.
Pois bem, o livro de Flávio Rocha é resultado de seus estudos em nível de mestrado na University of Creation Spiritualy- Naropa University, nos Estados Unidos. Escrito numa linguagem simples e intercalando várias poesias de autoria de Dom Hélder, a publicação nos apresenta de forma resumida toda a trajetória de ação desse homem que é considerado um dos principais nomes da Teologia da Libertação no Brasil.
O Dom Hélder que vamos encontrar no livro de Flávio Rocha vai surpreender muita gente uma vez que o autor enfatiza a articulação entre a ação política e a meditação, numa curiosa simbiose entre defesa dos oprimidos e misticismo. Vamos encontrar um homem simples, de hábitos discretos que tem verdadeira paixão pelas plantas de seu jardim e vê na natureza uma forma de contato com Deus, sem que isso o impeça de sentir e lutar contra o sofrimento dos mais pobres.
Por que não pensar numa ponte ecumênica entre Dom Hélder e o monge budista vietnamita Thich Nhât Hanh, autor de “Meditação andando” e “Flamboyant em chama- rumo ao sol”? É que os dois não se ausentaram da responsabilidade para com o outro sem também se absterem do poder da meditação no que se refere à ligação com a natureza/divindade.
O mérito do livro de Flavio Rocha vem num poema do próprio Dom Hélder: “Não creia na força de quem bajula os fortes/ e de quem humilha os fracos./De quem não sorri de crianças brincando,/de quem não tem olhos para a beleza/ e é incapaz de parar, mesmo na maior pressa,/para contemplar uma flor.”

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A ilha perdida


(Para Catarina, minha mãe)
Sob a névoa do esquecimento, inutilmente tento traçar uma história pessoal das primeiras experiências como leitor. Como um hesitante filme rodado em super 8, algumas imagens sem edição rondam a cabeça. O jardim da casa velha, no bairro do Róger, em João Pessoa. O menino estranhamente feliz lendo o livrinho de capa azul, da Editora Ática, coleção Vagalume. Seria “A ilha perdida” ou “O segredo de Taquarapoca”?
Toda vez que tento formar essa imagem mais elaborada sobre o assunto me vem na cabeça outra leitura, dessa vez do adulto. É que me lembro do conto de Clarice Lispector chamado “Felicidade clandestina”, que se passa no Recife, no qual uma pequena garota se delicia ao finalmente conseguir ler um livro infantil mesmo que emprestado. Sim, essa estranha alegria que se compara ao descobrimento de um lugar paralelo nunca antes visto, o mundo dos livros e de suas histórias, pode ser chamada provisoriamente de “felicidade clandestina”.
Como num filme, os nexos temporais são outros e me vejo entrando na universidade, em fins da década de 80. Lembro do estágio na área de Cultura do Sesc de João Pessoa, das deliciosas leituras de literatura brasileira sempre facilitadas pelo prestimoso auxílio da bibliotecária Mara. Descobrindo o universo do conto do escritor Rubem Fonseca, devorando também seus romances como “A grande arte” ou “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. Ou saboreando a crônica de outro Rubem, o Braga, no “O conde e o passarinho”.
Uma história pessoal da leitura também passa pelas idas e vindas aos Sebos e livrarias. Como não se lembrar da livraria do Coronel Albertino, quase no fim da Rua da República. Sentado num tamborete, se refestelando com um prato de macaxeira com carne de porco e bebendo vinho Jurubeba ele atendia o menino em seu passeio pela João Pessoa antiga. Ou do Sebo Cultural de Heriberto Coelho, quando ainda era situado no centro, numa casa antiga, com quartos e mais quartos cheios de livros, nos fundos de uma igreja barroca. Foi ali que conheci os livros de João Antônio, com seus títulos esquisitos: “Malhação de Judas Carioca” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Ao lado da sede da Associação Paraibana de Imprensa (API), na Visconde de Pelotas de minha cabeça ainda posso perfeitamente entrar na Livro 7 e ser atendido por Roberto ou na Galeria Augusto dos Anjos de meu pensamento posso passar pela sortida Livraria do Luiz e perguntar sobre aquele lançamento ao Josélio.
E aquela coleção completa de Balzac que o beat João Henrique da Livraria Paidéia tinha? E aqueles livros que desejei comprar e não pude? É assim, aos pedaços, de forma incompleta e subjetiva, que se constrói uma história da leitura, como um vaga-lume perdido na escuridão. Assim, pessoas, personagens, enredos, lugares, títulos se misturam ou se apagam com o tempo, tal qual o filme “Coração de tinta”. Como não se lembrar dos labirintos de Borges?