quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Carta ao Luíz


Carlos Azevedo*
Outro dia, encontrei o professor Luíz no saguão do aeroporto, em João Pessoa. Era madrugada, eu me dirigindo ao interior de São Paulo e ele, com certeza, indo para Brasília para dar expediente no dia seguinte, no Congresso Nacional. Cochilava e por certo aquela viagem ao centro do país chamado Brasil fisicamente o desgastava por mil vezes. Tive receio de cumprimentá-lo, de atrapalhar seus pensamentos ou mesmo seu breve descanso naquele momento.
Entre um cochilo e outro, ele me olhou. Talvez tivesse lembrado daquela face. De onde conheço aquele outro senhor que ali também espera o tedioso momento do embarque?
Os anos se passaram Luíz. E o que eu queria apenas te dizer naquele momento é que as árvores que você plantou na Praça da Alegria da UFPB cresceram. Confesso que no início, logo quando você as plantou não tive muita fé que elas fossem vingar, talvez pisoteadas pelas manadas desatentas de selvagens estudantes. Mas a fé floresce hoje nos corredores da universidade, em João Pessoa. A sombra boa já acolhe os grupos que alegremente conversam de tudo por lá.
Naquele tempo, de árduas militâncias no Partido dos Trabalhadores e no movimento estudantil, sabia que podia contar com seu apoio e experiência como diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Mas o tempo te encaminhou para tarefas mais difíceis ainda. E te distanciaram da sala de aula, do convívio com os estudantes e professores, do convívio com os fiéis na Igreja. Tarefas históricas de um tempo que clamava por mudanças radicais. E não bastava ser apenas professor ou padre. Mas sei que sentes saudades e nunca abandonastes por completo nenhuma das duas missões.
Hoje tua missão é mais árdua. Acompanho-te pelos jornais. Combates com toda a tua força e coragem o crime organizado que se infiltrou por todos os poderes e esferas deste país. E corre o risco de ser perseguido e morto, inocente cordeiro, tal qual Cristo. Mas segues teu caminho com honra, coragem e fé.
Pois é professor, li que alguém, o qual não se pode nem pronunciar o nome, autoritariamente quer te tirar o sagrado direito de celebrar a vida, seja na universidade, na Igreja ou na tribuna.
Segue teu caminho como homem honrado, assim como fez o nosso Dom Hélder, clamando por justiça num país injusto. Empunha teu mandato popular conquistado nas urnas e celebrado na comunhão dos homens simples. E lembra que muitos te reconhecem pelas árvores, pela fé, pelos amigos que cultivas e pela coragem de fazer deste lugar chamado Brasil uma utopia pulsante e viva, apesar de tudo.

* Jornalista, professor de Comunicação Social da UEPB

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Rizoma


Era apenas um pequeno e murcho ramo de cor lilás solto na calçada. Sob o sol não duraria mais que dois dias. Olhei para o meu filho e me abaixei para apanhar o pedaço de planta agonizante. Fiz sem pensar e ele notou isto. Mas plantar onde papai? Silêncio.
Chegando a casa, providenciei alguma vasilha para provisoriamente colocar na água o pedaço de planta, com a suspeita que ele não agüentaria. Para minha surpresa, no outro dia, logo ao amanhecer, algumas flores de um delicado rosa brotaram por entre as folhas. Talvez um sinal da planta, na sua luta pela sobrevivência. Ou um gesto de agradecimento?
A partir daí, as mudanças vão se operando rapidamente. Algumas folhas já desgastadas pela luta vão cedendo lugar, Novos brotos vão surgindo. E um dos galhos já esboça duas folhas verdinhas, lá bem no alto, destemido tal um cume de uma montanha. Só agora me lanço com atenção ao transparente vaso. Inversamente, mergulhados na vasilha, muitas raízes e pequenos rizomas desenham uma cabeleira, procurando terra, buscando um chão, sobrevivência.
O silencioso trabalho da natureza já me faz pensar em comprar jarro e terra para acomodar a mais nova habitante da casa. Já não é mais um pedaço de planta, talvez ganhe algum espaço logo no meio da mesa.
Este inesperado diálogo com o mundo vegetal me faz lembrar um pequeno texto de dois grandes pensadores de nosso tempo, Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores do livro “Mil platôs- capitalismo e esquizofrenia”. Trata-se de “Rizoma”, que na edição brasileira está no primeiro volume. Nele, os dois filósofos tomam emprestado da biologia a noção de rizoma e mostram como o conhecimento é construído em forma de ramos, árvores. “A árvore já é a imagem do mundo, ou a raiz é a imagem da árvore-mundo” (p.13) Assim, a lógica da árvore está presente na Psicologia, na informática e na Lingüística etc. Os dois pensadores querem sair dessa lógica binária e partir para a multiplicidade, como rizomas que se multiplicam em pequenas radículas que compõem o balé vegetal imprevisto da vida na Terra.
Num mundo em que tudo está conectado é possível se pensar hoje na multiplicidade de uma humanidade ligada/desligada em mil platôs, redes complexas abarcam comportamentos, pensamentos e mobilizações. Um mundo rizomático no qual tudo está interligado, como no filme “Babel” (da trilogia “Amores Brutos” e “21 gramas”, do diretor Alejandro González Iñárritu) mesmo que muita gente não tenha consciência disto.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Linha de passe


Inutilmente as mãos são levantadas e dirigidas ao céu. Cenas se misturam, num caótico balé de mãos no qual se fundem os braços de torcedores e fiéis. Mãos indefinidas que clamam um não sei o quê, mas essas imagens parecem tecer os fios narrativos do filme “Linha de passe” (2008), dos cineastas Walter Salles e Daniela Thomas. Um filme sobre o Brasil, sobre fé, sobre futebol...enfim, tudo isso junto.
Os pés que chutam a bola, que dão o passe, no glamour da primeira divisão num estádio ou no campinho de barro na periferia. Pés calejados que também percorrem o cinza claro ou escuro de São Paulo, tão bem captado pela fotografia de Mauro Pinheiro Jr. Entre a chuteira desgastada, o tênis adidas do bói ou a bota encardida do operário, os pés percorrem as linhas imaginárias da cidade, linhas que dividem a riqueza e o esplendor de uma Avenida Paulista do resto dos lugares esquecidos pelo discurso de cidadania dos governantes. Linha que demarca o pênalti, o momento decisivo, o perde ou ganha. Linha de passe, em que a arte se completa como um todo, no qual um dá uma chance ao outro, cedendo a frágil possibilidade de marcar o gol.
Ao terminar de assistir o filme nos dá a impressão que se passaram mais de três horas, devido à repetição do penoso cotidiano da metrópole paulista, sempre visto a partir da periferia, como se o filme fosse construído pela oscilação entre a repetição da brutal rotina e sua sutil diferença, gerando no espectador uma tensão, uma esperança de gol ou de melhora nas condições de vida. É como se fossemos forçados apesar da crise a também a acreditar, a ter fé, levantar as mãos como babacas torcedores e fiéis, sórdidos autômatos humanos, habitantes do país do futebol a espera de um milagre.
Não é a toa que a personagem principal de “Linha de passe” é a diarista Cleuza (interpretada por Sandra Corveloni), de 42 anos, mãe de quatro filhos e grávida do quinto, que torce fielmente pelo clube Corínthians. O futebol do filme não se desenrola no campo, mas sim na vida cotidiana. É como se o jogo ou o culto fossem metáforas desgastadas da vida, apenas espetáculos catárticos. O verdadeiro futebol de “Linha de passe” vem nos dribles feitos no trânsito da metrópole pelo motoboy Dênis, filho mais velho. Ou na busca obstinada de Reginaldo, o filho mais novo que procura o pai que nunca conheceu. Ou no “craque” Dário, filho que está prestes a completar 18 anos, estando excluído tanto do futebol quanto do mercado de trabalho. Ou no evangélico Dinho, também filho de Cleuza, que hesita em sua fé mas tenta seguir a impossível linha, num caminhar frenético.
“Linha de passe” é mais um retrato profundo do Brasil pelas lentes de Walter Salles, dessa vez dividindo com Daniela Thomas o olhar sobre um país marcado pelas contradições de uma modernidade conservadora, numa metrópole como São Paulo. Longe de ter uma estética roliúdiana ou de um melodrama televisivo comum, o filme inspira-se primordialmente num gesto documental, como se num precioso momento a ficção conseguisse de maneira estranha tocar e nos mostrar uma significativa parte de nossa difícil realidade.