terça-feira, 25 de agosto de 2009

“Catolé do Norte”, praça de guerra...onde Veja berra



- Papai, olha aquele homem ali, é o Chico César?

-É filho, é ele mesmo...

- O que ele fazendo aqui no Shopping Sul? Ele é de verdade?

- Filho, ele é de verdade sim, é mesmo o Chico César.

- E o que ele vai fazer lá em cima, Papai?!

- O mesmo que a gente fez: almoçar fora, porque hoje é sábado...

O diálogo entre pai e filho se encerra ao cruzarmos com o cantor de Catolé do Rocha que vai subindo a rampa. Ele escuta parte da conversa, apressado, sorri para os fãs.

Como sempre, não acredito em coincidências, depois explico o porquê.

Ao chegarmos a casa, abro a caixa de correio em busca da revista Veja ou do jornal de domingo, que eles teimam em nos antecipar nos tediosos dias de sábado. Ela está lá sim, bem no fundo, enrolada como uma cobra de papel colorido.

Aos lulistas de plantão ou esquerdistas asmáticos, daqueles que desmaiam ao ouvir qualquer referência à direita, vou logo explicando que não assinei a revista, apesar de recebê-la com regularidade. Como é que é? Eu era um dos milhares consumidores da Revista da Semana, do Grupo Abril, publicação bem legal, num formato econômico, que tinha tudo pra dar certo. Sem mais nem menos a Abril acabou com a magra revista e nos enviou uma correspondência avisando que não teríamos nenhum prejuízo, seríamos agora assinantes de Veja. Como ensino a disciplina Redação em Revista no Curso de Comunicação Social da UEPB, em Campina Grande, aproveitei a promoção apenas pra ter mais assunto nas minhas aulas.

Agora vamos às coincidências, pois bem, achava que tinha encontrado o Chico César por acaso...

Estava folheando a revista e vendo o desafio de se fazer uma publicação semanal no Brasil, lugar de escândalos quase diários. Pois bem, para dar uma arejada no leitor ou para aproveitar a queda nos preços das passagens aéreas por conta da tal da gripe suína, escalaram a repórter Thaís Oyama para entrar no que Veja considera o “país mais fechado e estranho do mundo”: Coreia do Norte.

Lembrei que coisa de dez anos atrás, em Campina Grande, mais precisamente no auditório da Associação Comercial, cedido gentilmente ao Curso de Comunicação. Fui um dos incautos a compor a platéia formada quase que totalmente de estudantes de jornalismo ávidos a escutar os conselhos da então “notável” entrevistadora de paginas amarelas da principal revista do grupo Abril, Thaís Oyama

O burburinho dos estudantes só vai ser aplacado quando a professora Socorro Palitó vai ao microfone, diz alô, alô, alô, som... boa noite! Convida ao palco principal a repórter de Veja, que vai dar uma palestra sobre a entrevista jornalística. Do meio da estudantada surge uma moça de descendência japonesa, trajando um vestidinho básico preto. Contratada dois anos antes para compor a equipe da Abril, ela passeia pelas recomendações básicas para uma boa entrevista, fala da importância dos equipamentos, das pilhas do gravador, da fita etc. Os estudantes, maravilhados com as informações óbvias, não escondem o delírio de estarem vendo alguém de Veja, veja que subdesenvolvimento regional ainda sofríamos. O meu bom humor de sempre é substituído por uma cara feia, daquelas de quem ouviu e não gostou. Fiquei pensando nas minhas aulas de teóricas sobre reportagem, todas inúteis frente aos olhos da jornalista de SP.

Anos depois, já em 2008, Thaís Oyama continua suas dicas no livro “A arte de entrevistar bem”, publicado pela Editora Contexto (de São Paulo) e consumido e fotocopiado aos montes pelos estudantes de jornalismo de todo país... São as mesmas informações, me decepciono ao comprar o livrinho, lá na Livraria Almeida. E agora, na orelha do manual, ela se diz especialista em palestras sobre técnicas de entrevistas...

Mas o que tem a ver os olhar de Thaís Oyama na “reportagem especial” de doze páginas de Veja sobre a Coréia do Norte com o nosso Chico César de Catolé do Rocha? Pois bem, ao escrever sobre o filho do líder comunista norte-coreano Kim Jong-II, Thaís Oyama nos lança o seguinte comentário: “Onde está Kim Jong-II, o filho? Não demora para o visitante entender que o tirano norte-coreano, de cabelos espetados como os do cantor Chico César, é, entre os Kims, o menor. O `Querido Líder´, como é chamado no país, é pouco mais do que o representante de seu pai na terra (...)” (p. 107-8) ou mais adiante ela completa sua comparação com a frase: “O Chico César coreano não é exatamente um gênio da política e da administração- sua opção preferencial é pelo investimento em armas nucleares.” (p.108).

“Catolé do Rocha/Praça de Guerra/ Catolé do Rocha/ onde o homem bode berra.” Caro professor e poeta Amador Ribeiro Neto será que finalmente entendi a letra de “Beradêro”, cantada a capela, que ecoa desde o distante primeiro disco do paraibano Chico César em “Aos vivos” de 1995?! Ou a repórter de Veja, enviada aos confins da terra, a um “país fechado e estranho”, errou a mão (ou melhor, no cabelo) na comparação superficial e sem sentido entre o ditador norte-coreano com o cantor paraibano? Acho que sim. Entre o olho vesgo para a direita de Veja e o olhar preconceituoso com os cabelos de Chico César, Oyama esqueceu de se reconhecer num país de milhares de pessoas de olhinhos simpáticos, esqueceu das diferenças entre oriente e ocidente. Perdeu uma grande chance. E olha que o Chico César já tinha cantado tal questão num disco chamado paradoxalmente de “Respeitem meus cabelos, brancos”, lançado em 2002, do qual vale transcrever parte da letra: “Respeitem meus cabelos, brancos/ Chegou a hora de falar, vamos ser francos/ Pois quando o preto fala, o branco cala ou deixa a sala com veludo nos tamancos/ Cabelo veio da África, junto com meus santos (....) Batuques, toques, mandingas, danças, tranças, cantos/ Respeitem meus cabelos brancos/ Se eu quero pixaim, deixa!/ Se eu quero enrolar, deixa!/ Se eu quero colorir, deixa!/ Se eu quero assanhar, deixa!/ Deixa, deixa a madeixa balançar (...) /fui claro??”.

Não podia terminar sem lembrar ao leitor que antes de despontar no cenário musical brasileiro contemporâneo como um dos grandes compositores do país, Chico César trabalhou duro como revisor, na Editora Abril, lá em São Paulo, nesse “lugar fechado e estranho” dum país aberto chamado Brasil

Com certeza, ele não deixaria passar uma comparação sem nexo desse tipo!

domingo, 2 de agosto de 2009

O MEZ DA GRIPE (Ou: variações de um vírus para jornal, piano, TV, internet e orquestra AH1N1)


“Atraídos como moscas ingênuas eles nem suspeitavam da silenciosa e invisível contaminação. Consumidores oportunistas iludem-se com as mensagens de até 80% de desconto em todos os itens. E o vírus da grippe circulava livremente pelos corredores climatizados do Leviatã Shopping. Construído como uma chaga que cresce dia após dia nas margens dum rio morto, o centro comercial vai ser vitimado paradoxalmente por um simples vírus.

Agosto, mês depois, o colossal Leviatã está quase vazio. Apenas alguns sobreviventes funcionários armados da segurança, usando máscara tal como bandidos, guardam o local. Como se todo aquele sonho tivesse apodrecido junto ao rio. As pessoas escondem-se em suas casas, com estoque limitado de comida, esperando boas novas ou Godot em frente da fogueira eletrônica da televisão.”

(Corte na carne do vídeo. Imagem chuviscada na TELA...)

(... ZZZZZZZ. Sem sinais de transmissão digital.)

Desperto num zapping. Na rede, um livro de asas abertas parece pousado em minhas mãos como um pássaro agourento.

Traço um cenário sinistro assim num pesadelo inspirado na leitura da novela “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, publicado originalmente em Curitiba, pela Fundação Cultural, Casa Romário Martins, em 1981. Comprei o moribundo exemplar num sebo, anos atrás. A leitura sempre adiada parecia esperar o momento certo. Encontrei-o emparedado, como num conto de Poe, entre dois pesados livros de Dostoiévski, na desordem de minha bibliotecaverna.

O pânico com a nova gripe espalha-se nos meios de comunicação como um vírus. A doença parece alastrar-se como um boato. As autoridades em pânico aconselham calma....tudo está tão vazio.

“Um homem eu caminho sozinho nesta cidade sem gente e as gentes estão nas casas” (p.9). O livro de Valêncio Xavier é também um passeio, um mórbido passeio composto de recortes de jornais da época, do início do século XX, quando a grippe espanhola vitimou milhares de pessoas pelo mundo.

Num desvio, largo o livrinho de 75 páginas e me dirijo ao gordo Almanaque Abril. Um professor meu, Giovanni, muito tempo atrás, me disse que só conseguiu passar no vestibular por conta dele. E assim, sempre tenho um aqui em casa, como um remédio necessário e amargo. Logo minhas aflições são recompensadas com a informação precisa e curta. Diz que a Espanhola foi a maior pandemia de gripe que se tem registro e ocorreu nos anos de 1918 e 1919, com uma letalidade de 2%. E imagina-se que o vírus tenha surgido nos EUA e se espalhado pelo mundo, de carona, por conta da movimentação de tropas durante a I Grande Guerra.

Continuamente a mesma farsa se repete na História. Comerciais, clipes, guerras, terroristas, prisões como a de Guantánamo, porcos e vírus, tudo misturado, argamassado. Militarismos & sanitarismos impotentes no descontrole da situação. Cenário de uma guerra contra o terror invisível desenha-se. Paradoxalmente, acho que a imagem que mais corresponde ao momento de hoje pode ser achada na capa do disco “Animals” do Pink Floyd, mais precisamente nas músicas “Pigs on the Wing” e “Pigs on the Wing 2”, de 1977. Sim, concretamente os porcos estão a flutuar. E o ar se tornou rarefeito, pesado, emporcalhado, tal como no Senado. No entanto, como Marshall Bermann pinçou cirurgicamente da lavra do barbudo Marx: tudo que é sólido se desmancha no ar. E a levitação é uma arte das mais pesadas. Emporcalhamos tudo, big man, pig man! Cachorros cínicos reclamamos injustamente da natureza. É bom também lembrar que na Revolução dos Bichos, os porcos estão estrategicamente sentados no poder. O discurso sanitário e moralista gosma em suas bocas. Urge uma nova e marxista-leninista-trotskista-maoísta permanentemente mutante & ambulante revolta da vacina, dessa vez liderada por um vírus emporcalhado.

Influenza num país de múltiplas influências, conflitos e confluências. Influenza parece ser eterna e não ter remédio para ela devido à sua própria mutação, modificação. Vasta combinação e recombinação de genes, o vírus é mais rápido que a ciência e a sociedade de consumo. Ao invisivelmente sentenciar a limitação dos saberes do homem, a chamada Gripe Suína nos devolve a condição bestial de porcos, porcos com asas. Gripe eterna que atravessa a história num único espirro milenar. Metáfora viva da globalização, ela atinge todos, num único erótico sopro de prazer e morte. Espalha o terror em ambientes fechados e denuncia a sociedade que se fecha em si mesma. Provoca o vazio e nele se desenvolve. Entre o Estado e o Mercado, num entrelugar, o vírus habita os corpos e devora as mentes.

Mas retornemos ao livrinho-novella de Valêncio Xavier. Bricolagem hábil de textos dos mais diversos gêneros (notícias, anúncios de jornais, relatórios), “O mez da grippe” também me faz lembrar a pioneira arqueologia moderna dum Gilberto Freyre ao escacar nos jornais pernambucanos recortes que construam um retrato da representação da escravidão num outro livrinho belíssimo, que também vale ser lido. Ou mesmo as aulas pós-modernas dum tropicalista Jommard Muniz de Brito ou dum antenado professor como Cláudio Paiva, todos os dois com seus abismos e provocações, num mítico DAC (Departamento de Artes e Comunicação) da UFPB, tempos atrás. O ato de brincar com os recortes nos lembra que a linguagem também é um jogo de múltiplas combinações.

Em “O mez da grippe”, no prefácio de 1981, escrito Francisco Battega Netto vê-se na “escrita” pós-moderna de Xavier um livro-colagem que traz dentro de si as possibilidades de sucessivas montagens e desmontagens do discurso, tal como o vírus da gripe. Ao recortar os diversos textos e imagens de uma época ao mesmo tempo distante e próxima, Valêncio empunha uma tesoura que dá nova vida (sentido) a fragmentos que combinados de forma inovadora vão alimentar o próprio corpo/texto da literatura, da novela em si.

Um livro desesperadoramente atual mesmo 28 anos depois de publicado “O mez da grippe” repete-se como uma fantasmagoria pós-moderna na televisão e nos jornais brasileiros. Quem se habilita a fazer uma nova montagem sobre esta pandemia no suíno mês de agosto/desgosto?

Ou como diz meu filho Ícaro nos seus recém completados sete anos de sabedoria, ao ser indagado sobre o assunto: “Papai, a literatura é uma planta carnívora!”.