sábado, 28 de novembro de 2009

Scrooge no Ponto de Cém Réis


Covarde, hesito entre o Calçadão da Cardoso Vieira e o Ponto de Cém Réis, entre Campina e João Pessoa. Talvez não me “salve” por isso. Não sou tão partidário como Gonzaga Rodrigues, que fez da Capital seu definitivo e último microcosmo. Faço caminho inverso, às vezes. Pendular feito relógio doido sou um animal hipermidiático que ainda lê jornais impressos, na tela ou no computador.

Esta semana me deparo com algumas manchetes culturais que um sexto sentido animal me diz que são respingos dum processo pré-eleitoral. Não brotam do chão como sementes nem caem do céu como gotas de chuva de Verão. São friamente calculadas como balas a atingirem seu público. Ou melhor, seu alvo. Midiaticamente maquiavélicas engrenagens, trilhos prontos para um futuro in-certo. Em Campina, depois de muitos anos e mandato, autorizada a reforma do decadente teatro municipal Severino Cabral. Em João Pessoa, com grande pompa, comemoram-se com festival os não sei quantos anos do Theatro Santa Roza.

Entre o pseudo-armorial remodelado “zéparaíba” Jessier Quirino lançando seu berro novo de bezerro a quarenta Reais e um pernambucanamente nômade Antônio Nóbrega “de grátis” como atração de um comício, você escolheria quem? Poesia dita, escrita ou musicada? Ou dançada? Entre um festival de teatro que sai às pressas e um encontro de foles e sanfonas você escolheria o quê? Talvez nenhum dos dois, talvez porque esteja a fim de sorver como um Drácula sem excitação todo sangue cultural dum Lua Nova junto aos comportados vampiros de classe média alta, num shopping qualquer em Manaíra beach. Vai uma pipoca? Desculpe, derrubei seu sorvete do McDonalds...

Entre todas essas opções do nosso pobre roteiro, me encontro no Ponto Cém Réis totalmente remodelado pelos futuristas arquitetos sem futuro que executam mudernas obras numa “paraibarroca cidade”, pra lembrar nosso “êmicí” Amador Ribeiro Neto. Local transformado ou assassinado? O sancho pampa Lau Siqueira como Borges montado no seu ginete cultural nos faz acreditar que como Heráclito nunca atravessamos o mesmo lugar, assim resolvo deixar de saudosismo retrô e encarar a coisa como ela é, a la Nelson Rodrigues....

Milimetricamente os coreanos já tomaram conta do pedaço, abriram uma lanchonete gostosa com pastéis paulistas, sucesso do momento. Imobilizado em bronze, diferente do poeta Caixa D´água, que foi martelado no cimento do provisório, o já sem óculos compositor Livardo Alves não faz nenhuma objeção em posar para fotos dos minguados turistas culturais. Assim, a prata da casa, com suas câmeras de celulares de baixa resolução faz a festa com o célebre poeta da cueca, ícone recriado pelo marqueteiro Walter Santos. Ao lado, como se a história se repetisse como farsa, brota do nada outro café, Carlos Café, para a alegria dos velhinhos, antigos e conservadores. Bem ali, pra o gosto da freguesa contemporânea, que acompanha todas as novelas e as tendências da moda, tem uma nova malharia, tudo na promoção mesmo, vai lá conferir, grita o homem inspirado em Sílvio Santos, numa caixa de som. E uma loja de games, alguns piratas, claro, para a euforia da meninada infodependente da violenta realidade virtual. Lâmpadas numa árvore de piscapisca, no Camelódromo das contradições chinesas no antigo prédio do INSS antecipam poeticamente e drasticamente o Natal. As árvores pequenas, essas de verdade, plantadas pelo poder público municipal, se prosperarem, darão sombra no futuro, seja este ou aquele o governador. Enquanto isso, sacrificialmente os espetinhos relembram tragicamente a fumaça da judaizada Branca Dias.

E como se num milagre de dezembro em fins de novembro, num filme adaptado ou num livro do próprio Charles Dickens o recém convertido em caridoso e cristão senhor Ebenezer Srooge reaparece em pleno Ponto de Cém Réis distribuindo livros usados num ousado, bondoso e cristão projeto cultural pré-eleitoral de promoção da leitura junto ao povo. Entro na fila da sopa com fome. Como os outros consumidores culturais e me refestelo com o gratuito banquete subplatônico. Encontro poesias do esquecido barbeiro-poeta Eulajose Dias e do nosso grande cronista Luiz Augusto Crispim. E está feito nosso cântico de Natal antecipado...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cordilheira em Borborema


Fazendo uma cara de que nada entendi, cinicamente disparo para o homem que vem passando pelo Calçadão da Cardoso Vieira: galego, esse pessoal é de onde?
- Sei lá, é bem do Cariri...
Vestidos mais que tipicamente, os integrantes do grupo nômade Purik, do Equador estão como centro das atenções no Calçadão. Um pequeno gerador movido a gasolina alimenta duas caixas de som. Um menino e dois homens cantam as músicas do CD Caminante de los Andes. As mulheres, duas senhoras baixinhas e uma jovem de cabelos negros em trança, sorridentes oferecem roupas,discos do grupo, bolsas, flautas de bambu entre outras coisas ao público ouvinte.
Na mesa do SãoBraz, estendida no Calçadão, Mateus e Celeste entretidos só conversam sobre psicanálise. Ao lado, não dou bola pra Lacan muito menos pra Freud, exerço meu direito ao devaneio e, de longe, observo a cena.
Ao lado do Supermercado Tropeiros e em frente aos dois chaveiros da Cardoso, o grupo parece estar nas alturas ao tocar Condor Pasa e continuar com Guantanamera. Biliu de Campina atravessa o espetáculo de camisa xadrez verde e encontra Baixinho do Pandeiro, que também acompanha a apresentação.
Ao redor do grupo param um rapaz e sua bicicleta de entregar água mineral, um outro homem que vende café. Os engraxates batucam suas caixas normalmente, como se nada pudesse interferir na rotina do Calçadão ou roubar a atenção de possíveis fregueses.
Senhora, senhora, repito a pergunta inicial a uma mulher de seus 50 anos que vem passando desatenta, talvez vinda da Maciel Pinheiro, com duas sacolas de plástico na mão:
- Sei não, eles devem ser indios apaches ou do paraguai. Mas vou me embora daqui porque essa música me dá sono.
Repito a pergunta a um jovem:
- Eles são coreanos...
Com um sorriso revestido de ouro nos dentes, vem chegando Biu do Violão, figura folclórica da cidade. Senta-se na mesa, no Café São Braz e vai logo fazendo sua interpretação:
- Sabe não...eles são cruzamento de peruano com paraguaio, mas não gosto da música deles não, prefiro Roberto Carlos. E essa coisa de cantar na rua em Campina quem inventou foi eu nos anos 70, quando ainda havia seresta por aqui. Os portugueses donos de restaurantes davam graças a Deus quando a gente chegava com um violão para eles venderem cana. Depois, eles ficaram ricos e venderam os negócios pros brasileiros. Os brasileiros ficaram ricos também e não deixaram mais a gente chegar com um violão nos restaurantes...
A apresentação termina. Algumas moedas no chapéu de palha e só. Decepcionados, recolhem as caixas de som e os microfones. A caixa com CDs fica aberta e um homem se aproxima:
- quantequié?
- Dez riais
-......
Um artista de rua, Moreno aproveita o vácuo do fim da apresentação do grupo Purik e monta seu jogo de apostas, na verdade um mini campo de futebol riscado num tapete velho com apenas uma trave e cinco canecos de alumínio empilhados:
- Bora, bora, acabou a música, mas brincadeira continua, é um real pago cinco pra quem derrubar os cinco caneco duma vez....o erro não ta na bola mas no seu pé!!
O equatoriano ainda vestido a caráter não resiste e vai apostar. Novo dono da cena popular, o moreno faz catimba com seu apito vermelho de juiz de futebol, tudo isso pra desconcentar o jogador estrangeiro. Mexe na trave para tirar de esquadro a mira do apostador. Os observadores quase não respiram porque é um pênalti contra o Brasil e o futuro da seleção está nos pés do adversário equatoriano.
O músico chuta....decepção nas núvens novamente. Vingativa, a torcida vibra contra. O cartão vermelho levantado pelo dono do jogo e a advertência:
-Tá fora, ta fora...próximo, próximo!!!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Adorno e o trabalho docente


Corri para as estantes da biblioteca em busca do meu exemplar de “Educação e Emancipação”, coletânea de escritos do pensador Theodor W. Adorno (1903-1969), publicada pela Paz e Terra, em 1995. Demorou a achá-lo em meio ao amontoado caótico de livros que se tornou minha casa nesses anos, sim casa tomada, como em Cortázar. A folha de rosto marca muito bem com a minha assinatura e a data que estamos distantes daquela primeira leitura de outubro de 1997, quando fazia mestrado em Letras na UFPB e cursava a disciplina de Metodologia do Ensino Superior com o grande professor Luizito.

Pois bem, no livro Adorno se esforça para refletir sobre o sentido de se falar em educação, principalmente depois da barbárie que foi Auschwitz e o nazismo como um todo. O idealizador do conceito de indústria cultural também se preocupa com a relação entre filosofia e educação, televisão e formação, educação e emancipação etc. Mas eu procurava especificamente um trecho que me impressionou naquela primeira leitura dos escritos de teoria crítica sobre educação. Deixe-me folheá-lo, sim está ali em “Tabus acerca do magistério”, no qual Adorno nos mostra uma histórica ambivalência da figura do professor, que ora aparece como lacaio, preceptor, escravo, escriba, escrivão, monge etc. Daí, ele conclui que “a influência de antigas referências de professores como escravos” (p.102) é contraposta a uma “adoração mágica dispensada aos professores em alguns países, nos quais o magistério é vinculado à autoridade religiosa.

Confesso que tais preocupações sobre o trabalho docente e sobre as significações sociais e históricas do magistério me acometeram fortemente neste quase final de ano por conta de um silencioso mas turbulento processo que vem ocorrendo na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ele tira o sono da grande maioria de professores universitários estaduais. Cerca de dois anos atrás, desde a aprovação pelo então governador Cássio Cunha Lima da autonomia financeira da instituição de ensino superior e da votação pela Assembléia Legislativa do chamado Plano de Cargos e Salários, ficou acertado que a progressão docente na carreira do magistério superior só se dará mediante a avaliação de desempenho do docente e que tal avaliação deve ser feita a partir de resolução própria, aprovada nos próprios fóruns da UEPB. O que ocorre é que, passados quase dois anos do Plano, a administração central da Universidade não encaminhou nenhuma proposta consistente de avaliação docente para a discussão em seus fóruns e agora chega com uma proposta de minuta para “ampla discussão e debate” faltando apenas dois meses para o fim do ano e para progressão dos professores por mérito de desempenho acadêmico. É um pacote natalino que na verdade vai dificultar a progressão de grande parte do quadro docente da UEPB.

O que no mínimo os professores da instituição se sentem é traídos por um grupo que se encastelou nas estruturas sindicais e burocráticas da instituição e agora chega com uma proposta que parece com o que os docentes mais reclamam de seus alunos: uma cópia apressada e distorcida das resoluções de universidades como a UFCG, UFMG entre outras. E o pior, em muitos casos, ser diretor de centro, sindicalista, coordenador ou mesmo reitor favorece e muito o professor na hora da avaliação. Há uma clara penalização do ensino, do professor que dá aula, daquele que está todo dia ali, como o repetitivo como o bico da ave a comer as entranhas de Prometeu acorrentado. O ensino de graduação e a orientação de monografias de conclusão de curso na tabela de pontos a serem somados ao longo desses dois anos para se merecer a mudança de nível são vergonhosamente sub-valorizados.

Discutir tais questões não significa vincular a carreira docente ou os destinos da universidade às eleições futuras ou mesquinhas disputas políticas partidárias ou sindicais. Trata-se de defender os direitos dos professores, essas figuras ambíguas que transitam entre o estigma da antiga escravidão e a liberdade de ensino em sala de aula. Discutir tais questões também não significa ser contra a avaliação do trabalho docente, pelo contrário, temos de avaliar sim, mas justamente. Não sou contra as avaliações, mas acredito que elas devem ser encaradas não como vingança política, vendeta ou instrumento punitivo para os sujeitos rebeldes ou críticos.

Reduzir a intelectualidade ao valor de troca como diz Adorno em “Educação e emancipação” faz com que o professor seja encarado de forma mercantil ou mecânica. É o que ocorre hoje, em plena era dos técnicos cabeça de planilha, no qual os professores são “avaliados” apenas por métodos quase que exclusivamente quantitativos, num esdrúxulo sistema de trabalho misto de taylorismo e fordismo, em plena época pós-toyotista, na qual os diretos e garantias dos indivíduos e dos grupos são brutalmente submetidos na tirania do mercado em crise. Retoma-se assim a condição primeira do professor como soldado cativo de guerra. Guerra esta entre trabalho e capital, entre esforço para se construir intelectualmente e o de confortavelmente exercer quase em toda a “carreira” em postos de poder na burocracia estatal universitária ou sindical.

Neste sentido, vale refletir, discutir e questionar tal tentativa apressada de avaliação docente...decentemente!

Carlos Azevedo é professor-doutor do Curso de Comunicação Social da UEPB.