sexta-feira, 23 de julho de 2010


Os operários chegaram em silêncio, de mansinho, como numa operação de guerra. E em pouco tempo aplicaram ao redor da Praça Antônio Pessoa um enorme muro formado com placas de zinco, separando os freqüentadores da sombra das árvores ou mesmo dos bancos. Não se sabe quando se iniciará a obra nem mesmo quais os novos planos para o lugar.
O que se sabe é que muitos jovens que freqüentam a praça sequer estão interessados em conhecer quem foi aquele homem que está o tempo todo ali ao centro, imobilizado na eternidade metálica do bronze num pedestal antigo. É que há muito tempo a Praça Antônio Pessoa não tem mais esse nome, é conhecida na gíria hoje como Praça da Morgação. Os desatentos antropólogos ou sociólogos da academia deveriam estar interessados em saber os rumos da juventude e assim poderiam empreender uma pesquisa de campo na chamada Praça da Morgação. Francisco Fernandes com o seu “Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa” pouco me ajudou a entender o tal sentido da palavra uma vez que atestou que “morgado” é farto, abundante e rico.
O livro “Memorial Urbano de Campina Grande” lançado em 1996 mostra uma foto antiga do lugar e também informa que ele é o segundo mais velho logradouro público da cidade, construído na administração de Verguiniaud Wanderley para homenagear o coronel e irmão de Epitácio Pessoa. Antônio que chegou ao poder por conta da renúncia de Castro Pinto permaneceu no cargo por quase um ano, renunciando em seguida, morgado por uma enfermidade. O drama político de Antônio Pessoa nos faz pensar no contexto eleitoral de hoje, no qual paradoxalmente a preocupação maior das legendas e dos estrategistas é com a figura do vice.
O lugar ganhou o título de Praça da Morgação por não acontecer nada de diferente ao correr dos dias, na visão dos jovens. No entanto, com a instalação de um cursinho preparatório para o vestibular as coisas mudaram. Carrinhos de som a todo o volume desfilando os sucessos do momento, churrasquinhos esfumaçando, defumando tudo e todos. De morgada só no nome, a praça ferve de quinta a sexta-feira como uma festa ao ar livre, numa eterna balada a misturar estilos e atitudes da juventude campinense.
Nem mesmo os tapumes municipais agora cercando o lugar puderam morgar os freqüentadores da Praça Antônio Pessoa. Espremidos, encurralados nos espaços que sobraram ao longo da rua, eles improvisam uma conversa sobre o vídeo mais louco do momento no “You Tube” ou mesmo sobre a banda de rock mais irada. Degustam churrasquinhos numa conversa animada sobre dificuldades de escolher o curso para o vestibular, enquanto a estátua do vice estadista cercada como um líder vencido no seu “bunker” sente saudades do burburinho dos anos de ouro da Praça da Morgação.

Neste final de semestre fui convidado para compor a banca examinadora do vídeo documentário “Cheiros e Cores da Feira”, dos jovens formandos Allan Cleyton e João Matias, ambos do Curso de Comunicação Social (Jornalismo) da UEPB, orientandos do nosso Rômulo Azevedo. Trata-se de um vídeo de cerca de dez minutos nos leva a passear como turistas ingênuos pela Feira Central, esse patrimônio da cultura paraibana. Nestes tempos de modernização dos espaços públicos, o documentário da dupla já parece ser um registro importante do estado do lugar.
O escritor Lima Barreto em seu “Feiras e mafuás” nos dá conta das ambigüidades deste antigo lugar e modo de comércio, circulação de pessoas e mercadorias, que representa ao mesmo tempo nossa riqueza e contradições do espaço urbano. Ou seja, a feira é uma síntese do que nos somos, um manifesto vivo e pulsante de nossas limitações e possibilidades. Bem disse o cronista paraibano Gonzaga Rodrigues recentemente que a cidade nasceu com a feira. E ao redor da feira se fez grande, Campina. Passear pela feira é uma aventura antropológica. Basta lembrar as fotos produzidas por um Roberto Coura tempos atrás. E assim que deve ser encarada a empreitada, como uma atividade didática nas áreas de jornalismo e antropologia. Foi com essa perspectiva que aconteceu também no primeiro semestre um dia de campo na Feira Central com os estudantes que compõem nosso Grupo de Pesquisa em Jornalismo e Literatura da UEPB, UFCG e UFPB.
Eu que acreditava estar de “férias” longe dos mercados, fui convidado pelos amigos Júnior e Eripetson para “mussarrar” na Feira de Patos. Estranhei logo de saída o curioso nome e eles me explicaram que “mussarrar” é passear numa feira perguntando o preço de tudo, do mais caro ao mais ordinário item, sem ao menos comprar sequer um friso, para agonia dos comerciantes e vendedores.
Confesso que o termo “mussarrar” ficou ecoando na minha cabeça, como se fosse possível prever uma etimologia árabe antiga. Recorri aos dicionários e ao mundo virtual, mas nada. Nada de aparecer o termo mussarrar. O que consegui foi pouco e incerto e está situado na Índia antiga. Dizem que nas origens do povo Musahar é contada numa lenda que o deus hindu da criação deu aos homens um cavalo de passeio. E o primeiro Musahar decidiu cavar buracos na barriga do bicho para fixar melhor os pés enquanto cavalgava. Ofendido, o deus castigou os Musahar e os fez apanhadores de ratos. Hoje eles ocupam as regiões norte e sul da Índia. Abandonaram a ocupação de capturar ratos e se dedicam ao cultivo agrícola, como trabalhadores alugados. No entanto, ficou a marginalização grudada ao nome na Índia, uma vez que nada possuírem a não ser o próprio corpo. Entre a riqueza do cavalo dos deuses e a vida miserável e mundana do rato, somos todos mussarralés habitantes de cidades, shoppings, feiras e atacadões.

Estranhos objetos


Não me lembro bem, mas o primeiro contato com o estranho objeto foi na casa de minha mãe, em João Pessoa. Tinha sido presenteado por uma caridosa vizinha, que tinha comprado dois e fez um gesto de gentileza ao doar um exemplar de tão esquisita coisa. A minha mãe adorou o aparelho, todos fabricados em cores berrantes, provavelmente na China, lugar em que se faz tudo que é consumido no mundo de hoje.

No entanto, a estranha máquina futurista não funcionava sem estar carregada. No cabo, embutido, saia um par de chifres metálicos que mesmo sem fios poderia ser conectado em qualquer tomada da rede elétrica. Um infernal e minúsculo led vermelho avisava que a máquina fatal estava sendo alimentada, como se engolisse o veneno vindo da parede. Assim, a estréia de tão útil maquinário foi adiada para o sábado, numa propícia manhã de sol.

Carregada, ela era um perigoso objeto que não deveria cair em mãos despreparadas ou inábeis como as das crianças. A estranha máquina deveria ser empunhada e seu mecanismo deveria ser acionado quando da mínima proximidade das vítimas. Confesso que experimentei a sensação ligar a máquina, empunhá-la como um soldado americano e direcioná-la para algum inseto intrometido e zaaaz!! Jazia eletrocutado um maribondo perigoso. Ele não morreu logo da descarga elétrica, agonizante a criatura atingida pela crueldade moderna da raquete elétrica para insetos olhava para mim. O arrependimento foi instantâneo e desproporcional ao prazer de empunhar o estranho objeto vindo do Oriente.

Hoje a cada esquina eles estão sendo oferecidos pelos camelôs nas ruas centrais de Campina Grande. Kafkiano assumido, hipoteticamente fico pensando na reação do caixeiro viajante Gregor Samsa ou mesmo de um Franz Kafka (1883-1924) ao ver o tão esquisita máquina fruto do avanço da ciência chinesa ou indonésia. Ou mesmo observar um Nabokov, autor de Lolita, amante das borboletas e colecionador de várias espécies ver uma dona de casa queimar as asinhas amarelas ou azuis de tão delicado inseto.

Mesmo sem ter a agilidade de um Guga, minha mãe foi pioneira neste novo esporte olímpico que já se consolida no Brasil: o tênis de inseto. Ela desistiu da raquete e repassou o mortal artefato para outra vizinha.

Inimiga da biodiversidade, a raquete elétrica espalha-se como uma peste de mosquito da dengue, voando baixo pelo centro, sucesso de vendas. Fatal para moscas, muriçocas, mariposas ou borboletas, a máquina da China é uma espécie de “cadeira elétrica” do vôo. Guerreiros, os maribondos se organizam na resistência.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Profetas no Calçadão






O Calçadão da Cardoso tem dessas. Às vezes passa dias e dias calmos, como se estivesse em coma. Desde o campeonato de futebol decidido em favor do Treze com uma fervorosa comemoração, semanas atrás, os dias pareciam calmos finalmente. E de repente, um grito, uma confusão ou uma discussão quebram o silêncio, agitam o coração da cidade, que se move nervosamente.
Uma moça paga por um consultório odontológico sai abordando os pedestres: “O orçamento e o documento do aparelho é grátis...”. Como um pregão ortodôntico, anunciava sorrisos planificados e perfeitos a preço de banana.
Do outro lado, um homem mostra sua nova invenção. Duas tábuas de passar de madeira que já estão equipadas com extensão elétrica. Outro vendia dois pequenos rádios antigos, um deles um Nord-Som com três faixas.
No meio do burburinho da feira de celulares, passa uma figura estranha, vestido completamente de verde e amarelo, parecendo anunciar a nova paixão para os dias juninos. Paradoxalmente, a camisa da seleção brasileira parece unir torcidas como a do Treze e Campinense.
Batuca na caixa, olha nos olhos, catimba malandramente o freguês:
- E aí professor, vai uma graxa?
- Hoje não, valeu!
Velhas bicicletas descoloridas cruzam o Calçadão de um lado ao outro. Um vendedor de sandálias fosforescentes da moda clama pelas freguesas, produto original com preço de pirata. Personagem popular com seu megafone, Gavião canta ópera, todos já estão acostumados com sua excêntrica presença.
Eis que surge, com barba branca de profeta, o padre e parlamentar Luíz Couto, guiado por um par de assessores. Senta numa das mesas do São Braz, toma um café sem açúcar. Rapidamente cercado, gentilmente fala com o eleitorado. Um homem faz um pedido, quer uma Constituição Federal nova. O assessor anota o endereço e aproveita para lembrar ao padre tem de sair dali, pois ele tem uma entrevista agendada numa tv:
- Luíz, tem um salão de barbeiro logo ali, vamos dar uma aparadinha na barba, pra sair legal na televisão.
Paciente, Couto sorri. Parece obstinado em sua resposta:
- Vou nãooo homem, o povo daqui gosta de barba!

Consumo



“Como as pessoas chegaram a esse ponto?” indaga um dos filhos de Maria de Lourdes Galdino, uma aposentada de 67 anos que morreu pisoteada por uma multidão enfurecida numa inauguração de uma loja de eletrônicos que prometia televisão de plasma ao preço R$300.

A tragédia que se abateu sobre os Galdino não atinge só aos membros da família, atinge também toda a sociedade.

A dura e incisiva pergunta do filho de Maria de Lourdes que indaga como as pessoas chegaram a esse ponto parece sinalizar o que o pensador Zygmunt Bauman afirma em seu “Vidas para consumo”, que as coisas valem mais do que as pessoas no estágio atual de “evolução” da humanidade. Ou mesmo lembra os escritos de Nestor García Canclini reunidos em “Consumidores e cidadãos- conflitos multiculturais da globalização” (Ed. da UFRJ, 1999), no qual ele lembra que a cidadania hoje parece ser exercida toscamente através do consumo.

Não é preciso ajuda de uma sociologia das multidões para saber que os aglomerados humanos são perigosos. Os primeiros cientistas sociais morriam de medo das multidões enfurecidas. Tratados foram escritos na vã tentativa de controlar as multidões. Manadas humanas selvagens, hordas primitivas em plena pós-modernidade, eles saem para o futebol ou para uma inauguração de uma megaestore dispostos a tudo.

Talvez seja esse o “poder” da humanidade. Sozinho, o ser humano é indefeso. Num coletivo, vira bicho incontrolável, pisoteia-se idosos e crianças por uma tevê de plasma. Paradoxalmente, no Rio de Janeiro, pela televisão, os filhos de dona Maria de Lourdes Galdino souberam de seu trágico fim. E também foi por esse oráculo digital das massas que as pessoas foram convocadas para consumir o que não lhes foi dado o direito de ter por apenas 300 dinheiros.

Com 300 dinheiros pós-modernos posso comprar na promoção o celular do momento, a televisão de plasma, o ar condicionado, a geladeira frost free, a câmera digital, a filmadora e a bicicleta de alumínio. Com 300 dinheiros posso ser um deles, posso passar por cima de tudo e de todos com meu carro utilitário quatro por quatro.

Os shoppings são igrejas pós-modernas? Megaestores são bizarras mesquitas do consumo? Atacadões são monstros a engolir a concorrência e a todos que neles entram? Qual o sentido do consumo contemporâneo? Qual a posição do consumo em nossas vidas? Essas são as muitas perguntas que me faço nesse momento. No entanto, a principal pergunta já foi feita pelo filho de dona Maria de Lourdes Galdino: “Como as pessoas chegaram a esse ponto?”

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Esperando


Li nas páginas do Diário da Borborema que um grupo de pessoas está morando numa das paradas de ônibus logo ali, no bucólico São José, na rua do marechal, a Floriano Peixoto. Antônio Ribeiro, repórter que escreveu a matéria, soube como ninguém contar e captar o drama humano que se instalou num abrigo em Campina Grande.
Maria de Jesus que esqueceu a própria idade, “mora” com seu esposo José Mariano, 50 anos, mais conhecido como “Zezinho Sapatinho”. Juntou-se ao casal Fábio Roberto, 51 anos, que está na rua depois de ser traído pela mulher, no bairro do Jeremias.
Paradoxalmente, neste caso, vida parece imitar o teatro. Esta semana mesmo estava pensando na peça “Esperando Godot”(de 1952), de Samuel Beckett (1906-1989). “Esperando Godot” trata justamente de dois vagabundos que passam o tempo todo esperando e implicando um com o outro enquanto aguardam, num lugar ermo, a chegada de um tal de Godot que nunca vem.
Beckett é por sinal um dos grandes autores do chamado Teatro do Absurdo. Martin Esslin, que tem um livro raro sobre o assunto, nos informa que em 1957 a peça “Esperando Godot” foi apresentada por integrantes do Actors´s Workshop de San Francisco a um público de 1400 sentenciados da penitenciária de San Quentin. Não era de se espantar, ainda segundo o especialista, que os atores e diretores estivessem apreensivos por não saber exatamente a reação de um público não acostumado com a cena teatral de vanguarda. Abril-se o pano e para surpresa geral o espetáculo foi imediatamente captado pelos sentenciados. Um repórter do “Chronicle” que estava presente notou que os presos identificaram-se com a espera sem fim, na qual Vladimir e Estragon, protagonistas, estão submetidos. Diziam eles “Godot é a sociedade” ou “Eles sabem o que quer dizer esperar”.
Muitos críticos dizem que “Esperando Godot” é uma peça em que nada acontece duas vezes. Beckett soube trazer para a cena teatral a conversa comum, com palavrões, divagações e insultos.
A identidade desse tal Godot tão esperado é também motivo para o desespero dos principais hermeneutas do teatro. Alguns pensam que o nome deriva da palavra “god” que em inglês significa Deus. Esperado e esperança, Godot não chega na peça de Beckett. A espera torna-se nula, sem sentido, absurda.
Ao lado de nomes com Adamov, Ionesco ou Jean Genet, Beckett parece manter sua singularidade justamente por trabalhar a questão do tempo através da saturação da linguagem pela espera. O tempo é sua matéria principal tal como Marcel Proust (1871-1922), autor de “Em busca do tempo perdido”.
“Todos seus personagens têm consciência que tudo o que fazemos nesta vida é o mesmo que nada, quando visto à luz da ação sem sentido do tempo, que é em si mesmo uma ilusão”, nos adverte mais uma vez Esslin, no livro “Teatro do Absurdo” (Civilização Brasileira, 1968).
Deixando o universo becketteano e voltando ao nosso particular teatro do absurdo, a quem Maria, José e Fábio esperam? O que esperamos deles? Que ônibus vão tomar? Que horas são? Não importa...
Será que Godot vai chegar mesmo??!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

São José, o Cine

Em época de inverno, na sua marquise ainda se improvisa um abrigo, mesmo que provisório. A sua calçada desgastada e irregular ainda pode ser usada como palco para as pessoas que esperam demoradamente os ônibus. As paredes infiltradas também servem para colar cartazes de apresentações musicais de qualidade e gosto duvidosos. Falo do que restou, falo de escombros, de urbes e ruínas, do que resta dos mortos, como bem disse o poeta Políbio Alves em seus livros. Falo do que resta do Cine São José. Das ruínas da memória social da cultura campinense, de um tempo que se foi. Mas também dialogo com os homens e mulheres de hoje, com que restou e também com o que pode ser feito. E sonhado...

Talvez esteja errado e tudo não volte mais, “Cinema Paradiso”. Leio na monumental obra sobre a sétima arte na Paraíba, escrita por Wills Leal, que o Cine São José foi criado em novembro de 1945. E que ele tinha uma esquisita promoção para as pessoas do bairro: quem trazia a sua própria cadeira de casa tinha desconto no ingresso. Wills também relata que Campina Grande possuiu muitos cinemas de bairro e que eles tiveram um grande papel no entretenimento e formação de muita gente na cidade.

Escutei alguns rumores de que querem transformar o antigo cinema do São José em mais um “shopping” de camelôs. Seria enterrar mais um capítulo de nossa história cultural no lixo. Mas também tenho visto professores e alunos das duas principais universidades sonhando alto querendo um rumo mais decente para o prédio.

Não é que o governo tenha má vontade com o São José, o Cine. Dizem que ele foi reformado umas quatro vezes, em gestões de diferentes cores políticas. Na última, alguns anos atrás, resgatou-se a beleza do prédio. O São José brilhava sem ao menos ter um filme em cartaz. Vazio de pessoas e de projetos, sem uso, o prédio foi envelhecendo, degradando, se arruinando. Não lhe foi dada uma utilidade. E os espaços mais conservados são aqueles nos quais se tem um uso social.

É hora de sonhar com mais uma reforma, dessa vez diferente. E que o espaço seja cedido a um centro cultural para abrigar a criatividade de jovens estudantes, cineastas, atores e teatrólogos. O roteiro do filme é este... só falta rodar!



quinta-feira, 22 de abril de 2010

Baleia encalhada


Uma enorme baleia encalhada está morrendo lentamente na rua do general, a Floriano Peixoto. No sobe e desce ladeira, muita gente nem nota a agonia do animal. Rodeada por palmeiras imperiais, a fera parece cansada, entediada de sua triste existência. Uma baleia de concreto concretamente abandonada numa cidade sem mar. Talvez seja essa a imagem louca a que mais se aproxime da situação do teatro municipal Severino Cabral, que pena numa reforma sem começo nem fim.
Campina Grande é hoje uma cidade sem teatro. Conformado, o movimento teatral parece assinar o laudo cadavérico da fera abandonada ao lado do moderno terminal de passageiros. E é no terminal de passageiros que são encenadas as mudanças de modernização de uma cidade que precisa continuar crescendo para não estagnar e morrer. Infelizmente, no previsível teatro eleitoral, “cultura não dá votos”. E a fera permanece esperando a chuva que não vem, o inverno e seus festivais, o advento de uma nova consciência ou a ação salvadora dos homens de consciência cristã.
Bem perto dali, o cine teatro São José, quase em frente à lotérica, também não teve sorte. Tal qual um navio naufragado, foram arrancando suas tábuas e telhas. As portas são arrombadas e o lugar virou mais uma nova cracolândia, no qual o vício é o único filme em cartaz. Derrubados, os letreiros de concreto, acima da marquise, formam um estranho abecedário do desengano e abandono.
Claro que os espaços culturais fazem falta sim. Mas vejo algumas luzes a brilhar, vaga-lumes sem luar. E tais fenômenos chegam paradoxalmente do Pedregal, uma comunidade que traz a pedra no nome, como se quisesse exprimir a própria dureza da vida. Uma professora de Arte e Mídia da UFCG, Eliane Lisbôa, discípula do grande Boal do Teatro do Oprimido, montou com seus alunos e moradores do lugar um espetáculo chamado “Fronteiras: no dia em que o boi enfrentou o papangu”.
O palco que parecia morto toma as ruas, invade o “mundo comum” com nossas máscaras e personagens, como queria o sociólogo Erving Goffman, autor de “A representação do eu na vida cotidiana”. O palco gira no teatro do Sesc quando a instituição na raça promove um festival de teatro infantil no qual a educação de crianças das escolas estaduais e municipais passa necessariamente por assistir uma peça de qualidade. Dava para ver que muitos não tinham sequer visto qualquer encenação em suas vidas. O palco começa a girar e a girar com mais velocidade ao ver um jovem como André Costa Pinto, cineasta do premiado documentário Amanda e Monick (2008), promovendo cursos gratuitos para a formação de novos atores na UEPB.
Contente, esperançosa, a baleia encalhada da rua do general parece discretamente rir. É que no fundo, lá dentro de seu coração, pertinho das cadeiras dos espectadores, ela sabe que a vida é um palco giratório.

terça-feira, 6 de abril de 2010

No reino do medo


Por telefone, da Espanha, preocupado, liga um ex-aluno que está fazendo mestrado no exterior. Está sendo tomado por equatoriano. E os equatorianos são temidos por lá por se organizarem em gangues. Os espanhóis, com medo, mudam de calçada quando ele vem. Com a criação da chamada União Européia os estigmatizados da vez são os chamados “extracomunitários”, gente que vem de todo mundo tentar uma vida melhor em outro país ou simplesmente estudar. E é justamente o tema de um livro de Zygmunt Bauman, em “Confiança e medo na cidade” (Zahar, 2009), no qual há uma reflexão bem atual sobre as diversas formas de xenofobia e também sobre a figura do estrangeiro na cultura contemporânea.
Desligado momentaneamente da realidade nacional, mal sabe o meu amigo que o bairro no qual ele tinha um trabalho com economia solidária em João Pessoa, o São José, ao lado da próspera Manaíra, se transformou numa verdadeira faixa de Gaza. Divididos por um muro imenso, esses dois bairros formam uma única realidade, são faces da mesma moeda, israelenses e palestinos. Após o assassinato de uma senhora que dirigia seu carro nas proximidades, a polícia resolveu criar uma operação chamada “Asfixia”, no qual não se distinguem trabalhador, morador ou bandido.
Talvez o meu ex-aluno também estranhe quando retornar ao Brasil o desenvolvimento de mais uma faceta do mercado imobiliário em nosso estado, a criação de “agrovilas” afastadas da sociedade ou de condomínios vigiados 24 horas, como presídios de luxo para os endinheirados da vez, que não querem se misturar. No caminho, entre Campina e João Pessoa, contei mais ou menos três desses paraísos artificiais. E talvez, num futuro bem próximo, as cidades se transformem apenas em ruínas violentas e abandonadas, passando a vida a ser tocada via internet, no distante conforto de uma casa no campo. Nos Estados Unidos, segundo o livro, as chamadas “gated communities” são mais de vinte mil e sua população supera os oito milhões de pessoas.
Há em curso uma verdadeira arquitetura do medo. Muros, câmeras, cercas eletrificadas. O medo também movimenta a guerra pela audiência na televisão e é tema comum no cinema contemporâneo.
Zygmund Bauman nos adverte que o pavor da Europa Unida ao estrangeiro, ao imigrante deve ser lido não apenas como um temor ao diferente, ao diverso, ao incomum. É que os efeitos perversos da globalização são sentidos localmente, nas cidades. Daí, na Europa há uma crescente “mixofobia”, medo de se misturar aos demais, medo de incorporar o outro.
No entanto, para o pensador polonês, viver na cidade é uma experiência ambivalente, entre a maldição e a benção, entre o prazer e a dor como quer Freud. E o espírito da cidade se faz por minúsculas interações cotidianas, pequenos gestos que, segundo Bauman, “aplainam as arestas áridas da vida urbana”. Assim, me dá alegria em ver momentos de “mixofilia”, momentos nos quais pessoas vindas dos diversos pontos de Campina Grande e arredores se encontram em total harmonia para curtir um sol de domingo, ver uma exposição de carros antigos, ver um grupo de dança de portadores de necessidades especiais, receber gratuitamente mudas de árvores etc. Foi o que aconteceu no domingo, no Parque da Criança. Foi o que o que também ocorreu no divertido circo Estoril, ao lado do shopping. São esses pequenos milagres, pequenos mesmo, que nos fazem esquecer o reino do medo que se instalou nas cidades brasileiras, nas TVs e na cabeça das pessoas.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Ícaro sem rodinhas


No pátio do condomínio, o colega menor foi quem primeiro chamou a atenção dos pais para o fato:

-Ícaro, as rodinhas da tua bicicleta tão voando!

De fato, parece que era chegada a hora de constatações do tipo “Nossa! Veja como o menino cresceu, precisamos fazer alguma coisa”. Assim, o pai do coleguinha rapidamente abre a caixa de ferramentas na mala de seu carro e descola uma chave de uma antiga bicicleta. A oficina de pais e filhos se instala e uma das rodinhas que protegem o menino dos tombos de aprendiz é retirada. Hesitante, como se tivesse apenas uma asa, sai voando desajeitado, constatando o que o coleguinha já tinha observado.

- Eu consigooo! Eu consigooo!!

-“Olha pra frente menino!!”, berram todos em um coro preocupado, como se fosse um conselho pra o resto da vida, olhar pra frente sempre, sem que nada nos perturbe.

Fico curioso e instigado a retirar a outra rodinha, mas discretamente contenho minha emoção. Ao mesmo tempo, preocupado com os tombos e ansioso de ver Ícaro andar de bicicleta proponho que a oficina mais uma vez entre em ação. Confiante no seu próprio equilíbrio, ele pára a bicicleta azul para retirarem sua última asa.

Como um milagre, as duas rodas seguem uma linha imaginária e o menino equilibra-se em seus próprios sonhos. E o mundo é só uma paisagem móvel na bicicleta que roda encarando a própria impiedosa máquina do tempo, severa a nos levar.

- “Olha pra frente, olha pra frente!!”, gritávamos inutilmente.

Ícaro olhava para frente e dentro de mim como pai só conseguia olhar para trás, lembrando seus quase oito anos. E olhava mais para trás ainda. Mais e mais me recuava e me via pedalando sozinho pela primeira vez uma enorme e descascada Barra Circular pelas ruas de barro da minha infância. E lembrava os inúmeros tombos que a vida nos dá e das inúmeras vezes que a gente se levanta, avalia os arranhões, levanta a bicicleta e seguimos olhando pra frente, confiantes em não sei o quê.

Os pneus agora parecem vivos como duas novas asas de borracha a desenhar trajetórias nesse eterno movimento.

Tento pará-lo para saber a sensação de aprender a andar sozinho, mas é inútil. Já não é preciso também avisar que é necessário olhar para frente. Já não é necessário apará-lo segurando por baixo da sela. Ele segue seu destino...

O que me resta? Um inútil par usado de rodinhas de bicicleta, muitas lembranças, uma estranha felicidade clandestina e uma crônica na mão suja de graxa.