quarta-feira, 28 de abril de 2010

São José, o Cine

Em época de inverno, na sua marquise ainda se improvisa um abrigo, mesmo que provisório. A sua calçada desgastada e irregular ainda pode ser usada como palco para as pessoas que esperam demoradamente os ônibus. As paredes infiltradas também servem para colar cartazes de apresentações musicais de qualidade e gosto duvidosos. Falo do que restou, falo de escombros, de urbes e ruínas, do que resta dos mortos, como bem disse o poeta Políbio Alves em seus livros. Falo do que resta do Cine São José. Das ruínas da memória social da cultura campinense, de um tempo que se foi. Mas também dialogo com os homens e mulheres de hoje, com que restou e também com o que pode ser feito. E sonhado...

Talvez esteja errado e tudo não volte mais, “Cinema Paradiso”. Leio na monumental obra sobre a sétima arte na Paraíba, escrita por Wills Leal, que o Cine São José foi criado em novembro de 1945. E que ele tinha uma esquisita promoção para as pessoas do bairro: quem trazia a sua própria cadeira de casa tinha desconto no ingresso. Wills também relata que Campina Grande possuiu muitos cinemas de bairro e que eles tiveram um grande papel no entretenimento e formação de muita gente na cidade.

Escutei alguns rumores de que querem transformar o antigo cinema do São José em mais um “shopping” de camelôs. Seria enterrar mais um capítulo de nossa história cultural no lixo. Mas também tenho visto professores e alunos das duas principais universidades sonhando alto querendo um rumo mais decente para o prédio.

Não é que o governo tenha má vontade com o São José, o Cine. Dizem que ele foi reformado umas quatro vezes, em gestões de diferentes cores políticas. Na última, alguns anos atrás, resgatou-se a beleza do prédio. O São José brilhava sem ao menos ter um filme em cartaz. Vazio de pessoas e de projetos, sem uso, o prédio foi envelhecendo, degradando, se arruinando. Não lhe foi dada uma utilidade. E os espaços mais conservados são aqueles nos quais se tem um uso social.

É hora de sonhar com mais uma reforma, dessa vez diferente. E que o espaço seja cedido a um centro cultural para abrigar a criatividade de jovens estudantes, cineastas, atores e teatrólogos. O roteiro do filme é este... só falta rodar!



quinta-feira, 22 de abril de 2010

Baleia encalhada


Uma enorme baleia encalhada está morrendo lentamente na rua do general, a Floriano Peixoto. No sobe e desce ladeira, muita gente nem nota a agonia do animal. Rodeada por palmeiras imperiais, a fera parece cansada, entediada de sua triste existência. Uma baleia de concreto concretamente abandonada numa cidade sem mar. Talvez seja essa a imagem louca a que mais se aproxime da situação do teatro municipal Severino Cabral, que pena numa reforma sem começo nem fim.
Campina Grande é hoje uma cidade sem teatro. Conformado, o movimento teatral parece assinar o laudo cadavérico da fera abandonada ao lado do moderno terminal de passageiros. E é no terminal de passageiros que são encenadas as mudanças de modernização de uma cidade que precisa continuar crescendo para não estagnar e morrer. Infelizmente, no previsível teatro eleitoral, “cultura não dá votos”. E a fera permanece esperando a chuva que não vem, o inverno e seus festivais, o advento de uma nova consciência ou a ação salvadora dos homens de consciência cristã.
Bem perto dali, o cine teatro São José, quase em frente à lotérica, também não teve sorte. Tal qual um navio naufragado, foram arrancando suas tábuas e telhas. As portas são arrombadas e o lugar virou mais uma nova cracolândia, no qual o vício é o único filme em cartaz. Derrubados, os letreiros de concreto, acima da marquise, formam um estranho abecedário do desengano e abandono.
Claro que os espaços culturais fazem falta sim. Mas vejo algumas luzes a brilhar, vaga-lumes sem luar. E tais fenômenos chegam paradoxalmente do Pedregal, uma comunidade que traz a pedra no nome, como se quisesse exprimir a própria dureza da vida. Uma professora de Arte e Mídia da UFCG, Eliane Lisbôa, discípula do grande Boal do Teatro do Oprimido, montou com seus alunos e moradores do lugar um espetáculo chamado “Fronteiras: no dia em que o boi enfrentou o papangu”.
O palco que parecia morto toma as ruas, invade o “mundo comum” com nossas máscaras e personagens, como queria o sociólogo Erving Goffman, autor de “A representação do eu na vida cotidiana”. O palco gira no teatro do Sesc quando a instituição na raça promove um festival de teatro infantil no qual a educação de crianças das escolas estaduais e municipais passa necessariamente por assistir uma peça de qualidade. Dava para ver que muitos não tinham sequer visto qualquer encenação em suas vidas. O palco começa a girar e a girar com mais velocidade ao ver um jovem como André Costa Pinto, cineasta do premiado documentário Amanda e Monick (2008), promovendo cursos gratuitos para a formação de novos atores na UEPB.
Contente, esperançosa, a baleia encalhada da rua do general parece discretamente rir. É que no fundo, lá dentro de seu coração, pertinho das cadeiras dos espectadores, ela sabe que a vida é um palco giratório.

terça-feira, 6 de abril de 2010

No reino do medo


Por telefone, da Espanha, preocupado, liga um ex-aluno que está fazendo mestrado no exterior. Está sendo tomado por equatoriano. E os equatorianos são temidos por lá por se organizarem em gangues. Os espanhóis, com medo, mudam de calçada quando ele vem. Com a criação da chamada União Européia os estigmatizados da vez são os chamados “extracomunitários”, gente que vem de todo mundo tentar uma vida melhor em outro país ou simplesmente estudar. E é justamente o tema de um livro de Zygmunt Bauman, em “Confiança e medo na cidade” (Zahar, 2009), no qual há uma reflexão bem atual sobre as diversas formas de xenofobia e também sobre a figura do estrangeiro na cultura contemporânea.
Desligado momentaneamente da realidade nacional, mal sabe o meu amigo que o bairro no qual ele tinha um trabalho com economia solidária em João Pessoa, o São José, ao lado da próspera Manaíra, se transformou numa verdadeira faixa de Gaza. Divididos por um muro imenso, esses dois bairros formam uma única realidade, são faces da mesma moeda, israelenses e palestinos. Após o assassinato de uma senhora que dirigia seu carro nas proximidades, a polícia resolveu criar uma operação chamada “Asfixia”, no qual não se distinguem trabalhador, morador ou bandido.
Talvez o meu ex-aluno também estranhe quando retornar ao Brasil o desenvolvimento de mais uma faceta do mercado imobiliário em nosso estado, a criação de “agrovilas” afastadas da sociedade ou de condomínios vigiados 24 horas, como presídios de luxo para os endinheirados da vez, que não querem se misturar. No caminho, entre Campina e João Pessoa, contei mais ou menos três desses paraísos artificiais. E talvez, num futuro bem próximo, as cidades se transformem apenas em ruínas violentas e abandonadas, passando a vida a ser tocada via internet, no distante conforto de uma casa no campo. Nos Estados Unidos, segundo o livro, as chamadas “gated communities” são mais de vinte mil e sua população supera os oito milhões de pessoas.
Há em curso uma verdadeira arquitetura do medo. Muros, câmeras, cercas eletrificadas. O medo também movimenta a guerra pela audiência na televisão e é tema comum no cinema contemporâneo.
Zygmund Bauman nos adverte que o pavor da Europa Unida ao estrangeiro, ao imigrante deve ser lido não apenas como um temor ao diferente, ao diverso, ao incomum. É que os efeitos perversos da globalização são sentidos localmente, nas cidades. Daí, na Europa há uma crescente “mixofobia”, medo de se misturar aos demais, medo de incorporar o outro.
No entanto, para o pensador polonês, viver na cidade é uma experiência ambivalente, entre a maldição e a benção, entre o prazer e a dor como quer Freud. E o espírito da cidade se faz por minúsculas interações cotidianas, pequenos gestos que, segundo Bauman, “aplainam as arestas áridas da vida urbana”. Assim, me dá alegria em ver momentos de “mixofilia”, momentos nos quais pessoas vindas dos diversos pontos de Campina Grande e arredores se encontram em total harmonia para curtir um sol de domingo, ver uma exposição de carros antigos, ver um grupo de dança de portadores de necessidades especiais, receber gratuitamente mudas de árvores etc. Foi o que aconteceu no domingo, no Parque da Criança. Foi o que o que também ocorreu no divertido circo Estoril, ao lado do shopping. São esses pequenos milagres, pequenos mesmo, que nos fazem esquecer o reino do medo que se instalou nas cidades brasileiras, nas TVs e na cabeça das pessoas.