segunda-feira, 24 de maio de 2010

Profetas no Calçadão






O Calçadão da Cardoso tem dessas. Às vezes passa dias e dias calmos, como se estivesse em coma. Desde o campeonato de futebol decidido em favor do Treze com uma fervorosa comemoração, semanas atrás, os dias pareciam calmos finalmente. E de repente, um grito, uma confusão ou uma discussão quebram o silêncio, agitam o coração da cidade, que se move nervosamente.
Uma moça paga por um consultório odontológico sai abordando os pedestres: “O orçamento e o documento do aparelho é grátis...”. Como um pregão ortodôntico, anunciava sorrisos planificados e perfeitos a preço de banana.
Do outro lado, um homem mostra sua nova invenção. Duas tábuas de passar de madeira que já estão equipadas com extensão elétrica. Outro vendia dois pequenos rádios antigos, um deles um Nord-Som com três faixas.
No meio do burburinho da feira de celulares, passa uma figura estranha, vestido completamente de verde e amarelo, parecendo anunciar a nova paixão para os dias juninos. Paradoxalmente, a camisa da seleção brasileira parece unir torcidas como a do Treze e Campinense.
Batuca na caixa, olha nos olhos, catimba malandramente o freguês:
- E aí professor, vai uma graxa?
- Hoje não, valeu!
Velhas bicicletas descoloridas cruzam o Calçadão de um lado ao outro. Um vendedor de sandálias fosforescentes da moda clama pelas freguesas, produto original com preço de pirata. Personagem popular com seu megafone, Gavião canta ópera, todos já estão acostumados com sua excêntrica presença.
Eis que surge, com barba branca de profeta, o padre e parlamentar Luíz Couto, guiado por um par de assessores. Senta numa das mesas do São Braz, toma um café sem açúcar. Rapidamente cercado, gentilmente fala com o eleitorado. Um homem faz um pedido, quer uma Constituição Federal nova. O assessor anota o endereço e aproveita para lembrar ao padre tem de sair dali, pois ele tem uma entrevista agendada numa tv:
- Luíz, tem um salão de barbeiro logo ali, vamos dar uma aparadinha na barba, pra sair legal na televisão.
Paciente, Couto sorri. Parece obstinado em sua resposta:
- Vou nãooo homem, o povo daqui gosta de barba!

Consumo



“Como as pessoas chegaram a esse ponto?” indaga um dos filhos de Maria de Lourdes Galdino, uma aposentada de 67 anos que morreu pisoteada por uma multidão enfurecida numa inauguração de uma loja de eletrônicos que prometia televisão de plasma ao preço R$300.

A tragédia que se abateu sobre os Galdino não atinge só aos membros da família, atinge também toda a sociedade.

A dura e incisiva pergunta do filho de Maria de Lourdes que indaga como as pessoas chegaram a esse ponto parece sinalizar o que o pensador Zygmunt Bauman afirma em seu “Vidas para consumo”, que as coisas valem mais do que as pessoas no estágio atual de “evolução” da humanidade. Ou mesmo lembra os escritos de Nestor García Canclini reunidos em “Consumidores e cidadãos- conflitos multiculturais da globalização” (Ed. da UFRJ, 1999), no qual ele lembra que a cidadania hoje parece ser exercida toscamente através do consumo.

Não é preciso ajuda de uma sociologia das multidões para saber que os aglomerados humanos são perigosos. Os primeiros cientistas sociais morriam de medo das multidões enfurecidas. Tratados foram escritos na vã tentativa de controlar as multidões. Manadas humanas selvagens, hordas primitivas em plena pós-modernidade, eles saem para o futebol ou para uma inauguração de uma megaestore dispostos a tudo.

Talvez seja esse o “poder” da humanidade. Sozinho, o ser humano é indefeso. Num coletivo, vira bicho incontrolável, pisoteia-se idosos e crianças por uma tevê de plasma. Paradoxalmente, no Rio de Janeiro, pela televisão, os filhos de dona Maria de Lourdes Galdino souberam de seu trágico fim. E também foi por esse oráculo digital das massas que as pessoas foram convocadas para consumir o que não lhes foi dado o direito de ter por apenas 300 dinheiros.

Com 300 dinheiros pós-modernos posso comprar na promoção o celular do momento, a televisão de plasma, o ar condicionado, a geladeira frost free, a câmera digital, a filmadora e a bicicleta de alumínio. Com 300 dinheiros posso ser um deles, posso passar por cima de tudo e de todos com meu carro utilitário quatro por quatro.

Os shoppings são igrejas pós-modernas? Megaestores são bizarras mesquitas do consumo? Atacadões são monstros a engolir a concorrência e a todos que neles entram? Qual o sentido do consumo contemporâneo? Qual a posição do consumo em nossas vidas? Essas são as muitas perguntas que me faço nesse momento. No entanto, a principal pergunta já foi feita pelo filho de dona Maria de Lourdes Galdino: “Como as pessoas chegaram a esse ponto?”

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Esperando


Li nas páginas do Diário da Borborema que um grupo de pessoas está morando numa das paradas de ônibus logo ali, no bucólico São José, na rua do marechal, a Floriano Peixoto. Antônio Ribeiro, repórter que escreveu a matéria, soube como ninguém contar e captar o drama humano que se instalou num abrigo em Campina Grande.
Maria de Jesus que esqueceu a própria idade, “mora” com seu esposo José Mariano, 50 anos, mais conhecido como “Zezinho Sapatinho”. Juntou-se ao casal Fábio Roberto, 51 anos, que está na rua depois de ser traído pela mulher, no bairro do Jeremias.
Paradoxalmente, neste caso, vida parece imitar o teatro. Esta semana mesmo estava pensando na peça “Esperando Godot”(de 1952), de Samuel Beckett (1906-1989). “Esperando Godot” trata justamente de dois vagabundos que passam o tempo todo esperando e implicando um com o outro enquanto aguardam, num lugar ermo, a chegada de um tal de Godot que nunca vem.
Beckett é por sinal um dos grandes autores do chamado Teatro do Absurdo. Martin Esslin, que tem um livro raro sobre o assunto, nos informa que em 1957 a peça “Esperando Godot” foi apresentada por integrantes do Actors´s Workshop de San Francisco a um público de 1400 sentenciados da penitenciária de San Quentin. Não era de se espantar, ainda segundo o especialista, que os atores e diretores estivessem apreensivos por não saber exatamente a reação de um público não acostumado com a cena teatral de vanguarda. Abril-se o pano e para surpresa geral o espetáculo foi imediatamente captado pelos sentenciados. Um repórter do “Chronicle” que estava presente notou que os presos identificaram-se com a espera sem fim, na qual Vladimir e Estragon, protagonistas, estão submetidos. Diziam eles “Godot é a sociedade” ou “Eles sabem o que quer dizer esperar”.
Muitos críticos dizem que “Esperando Godot” é uma peça em que nada acontece duas vezes. Beckett soube trazer para a cena teatral a conversa comum, com palavrões, divagações e insultos.
A identidade desse tal Godot tão esperado é também motivo para o desespero dos principais hermeneutas do teatro. Alguns pensam que o nome deriva da palavra “god” que em inglês significa Deus. Esperado e esperança, Godot não chega na peça de Beckett. A espera torna-se nula, sem sentido, absurda.
Ao lado de nomes com Adamov, Ionesco ou Jean Genet, Beckett parece manter sua singularidade justamente por trabalhar a questão do tempo através da saturação da linguagem pela espera. O tempo é sua matéria principal tal como Marcel Proust (1871-1922), autor de “Em busca do tempo perdido”.
“Todos seus personagens têm consciência que tudo o que fazemos nesta vida é o mesmo que nada, quando visto à luz da ação sem sentido do tempo, que é em si mesmo uma ilusão”, nos adverte mais uma vez Esslin, no livro “Teatro do Absurdo” (Civilização Brasileira, 1968).
Deixando o universo becketteano e voltando ao nosso particular teatro do absurdo, a quem Maria, José e Fábio esperam? O que esperamos deles? Que ônibus vão tomar? Que horas são? Não importa...
Será que Godot vai chegar mesmo??!