sexta-feira, 23 de julho de 2010


Os operários chegaram em silêncio, de mansinho, como numa operação de guerra. E em pouco tempo aplicaram ao redor da Praça Antônio Pessoa um enorme muro formado com placas de zinco, separando os freqüentadores da sombra das árvores ou mesmo dos bancos. Não se sabe quando se iniciará a obra nem mesmo quais os novos planos para o lugar.
O que se sabe é que muitos jovens que freqüentam a praça sequer estão interessados em conhecer quem foi aquele homem que está o tempo todo ali ao centro, imobilizado na eternidade metálica do bronze num pedestal antigo. É que há muito tempo a Praça Antônio Pessoa não tem mais esse nome, é conhecida na gíria hoje como Praça da Morgação. Os desatentos antropólogos ou sociólogos da academia deveriam estar interessados em saber os rumos da juventude e assim poderiam empreender uma pesquisa de campo na chamada Praça da Morgação. Francisco Fernandes com o seu “Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa” pouco me ajudou a entender o tal sentido da palavra uma vez que atestou que “morgado” é farto, abundante e rico.
O livro “Memorial Urbano de Campina Grande” lançado em 1996 mostra uma foto antiga do lugar e também informa que ele é o segundo mais velho logradouro público da cidade, construído na administração de Verguiniaud Wanderley para homenagear o coronel e irmão de Epitácio Pessoa. Antônio que chegou ao poder por conta da renúncia de Castro Pinto permaneceu no cargo por quase um ano, renunciando em seguida, morgado por uma enfermidade. O drama político de Antônio Pessoa nos faz pensar no contexto eleitoral de hoje, no qual paradoxalmente a preocupação maior das legendas e dos estrategistas é com a figura do vice.
O lugar ganhou o título de Praça da Morgação por não acontecer nada de diferente ao correr dos dias, na visão dos jovens. No entanto, com a instalação de um cursinho preparatório para o vestibular as coisas mudaram. Carrinhos de som a todo o volume desfilando os sucessos do momento, churrasquinhos esfumaçando, defumando tudo e todos. De morgada só no nome, a praça ferve de quinta a sexta-feira como uma festa ao ar livre, numa eterna balada a misturar estilos e atitudes da juventude campinense.
Nem mesmo os tapumes municipais agora cercando o lugar puderam morgar os freqüentadores da Praça Antônio Pessoa. Espremidos, encurralados nos espaços que sobraram ao longo da rua, eles improvisam uma conversa sobre o vídeo mais louco do momento no “You Tube” ou mesmo sobre a banda de rock mais irada. Degustam churrasquinhos numa conversa animada sobre dificuldades de escolher o curso para o vestibular, enquanto a estátua do vice estadista cercada como um líder vencido no seu “bunker” sente saudades do burburinho dos anos de ouro da Praça da Morgação.

Neste final de semestre fui convidado para compor a banca examinadora do vídeo documentário “Cheiros e Cores da Feira”, dos jovens formandos Allan Cleyton e João Matias, ambos do Curso de Comunicação Social (Jornalismo) da UEPB, orientandos do nosso Rômulo Azevedo. Trata-se de um vídeo de cerca de dez minutos nos leva a passear como turistas ingênuos pela Feira Central, esse patrimônio da cultura paraibana. Nestes tempos de modernização dos espaços públicos, o documentário da dupla já parece ser um registro importante do estado do lugar.
O escritor Lima Barreto em seu “Feiras e mafuás” nos dá conta das ambigüidades deste antigo lugar e modo de comércio, circulação de pessoas e mercadorias, que representa ao mesmo tempo nossa riqueza e contradições do espaço urbano. Ou seja, a feira é uma síntese do que nos somos, um manifesto vivo e pulsante de nossas limitações e possibilidades. Bem disse o cronista paraibano Gonzaga Rodrigues recentemente que a cidade nasceu com a feira. E ao redor da feira se fez grande, Campina. Passear pela feira é uma aventura antropológica. Basta lembrar as fotos produzidas por um Roberto Coura tempos atrás. E assim que deve ser encarada a empreitada, como uma atividade didática nas áreas de jornalismo e antropologia. Foi com essa perspectiva que aconteceu também no primeiro semestre um dia de campo na Feira Central com os estudantes que compõem nosso Grupo de Pesquisa em Jornalismo e Literatura da UEPB, UFCG e UFPB.
Eu que acreditava estar de “férias” longe dos mercados, fui convidado pelos amigos Júnior e Eripetson para “mussarrar” na Feira de Patos. Estranhei logo de saída o curioso nome e eles me explicaram que “mussarrar” é passear numa feira perguntando o preço de tudo, do mais caro ao mais ordinário item, sem ao menos comprar sequer um friso, para agonia dos comerciantes e vendedores.
Confesso que o termo “mussarrar” ficou ecoando na minha cabeça, como se fosse possível prever uma etimologia árabe antiga. Recorri aos dicionários e ao mundo virtual, mas nada. Nada de aparecer o termo mussarrar. O que consegui foi pouco e incerto e está situado na Índia antiga. Dizem que nas origens do povo Musahar é contada numa lenda que o deus hindu da criação deu aos homens um cavalo de passeio. E o primeiro Musahar decidiu cavar buracos na barriga do bicho para fixar melhor os pés enquanto cavalgava. Ofendido, o deus castigou os Musahar e os fez apanhadores de ratos. Hoje eles ocupam as regiões norte e sul da Índia. Abandonaram a ocupação de capturar ratos e se dedicam ao cultivo agrícola, como trabalhadores alugados. No entanto, ficou a marginalização grudada ao nome na Índia, uma vez que nada possuírem a não ser o próprio corpo. Entre a riqueza do cavalo dos deuses e a vida miserável e mundana do rato, somos todos mussarralés habitantes de cidades, shoppings, feiras e atacadões.

Estranhos objetos


Não me lembro bem, mas o primeiro contato com o estranho objeto foi na casa de minha mãe, em João Pessoa. Tinha sido presenteado por uma caridosa vizinha, que tinha comprado dois e fez um gesto de gentileza ao doar um exemplar de tão esquisita coisa. A minha mãe adorou o aparelho, todos fabricados em cores berrantes, provavelmente na China, lugar em que se faz tudo que é consumido no mundo de hoje.

No entanto, a estranha máquina futurista não funcionava sem estar carregada. No cabo, embutido, saia um par de chifres metálicos que mesmo sem fios poderia ser conectado em qualquer tomada da rede elétrica. Um infernal e minúsculo led vermelho avisava que a máquina fatal estava sendo alimentada, como se engolisse o veneno vindo da parede. Assim, a estréia de tão útil maquinário foi adiada para o sábado, numa propícia manhã de sol.

Carregada, ela era um perigoso objeto que não deveria cair em mãos despreparadas ou inábeis como as das crianças. A estranha máquina deveria ser empunhada e seu mecanismo deveria ser acionado quando da mínima proximidade das vítimas. Confesso que experimentei a sensação ligar a máquina, empunhá-la como um soldado americano e direcioná-la para algum inseto intrometido e zaaaz!! Jazia eletrocutado um maribondo perigoso. Ele não morreu logo da descarga elétrica, agonizante a criatura atingida pela crueldade moderna da raquete elétrica para insetos olhava para mim. O arrependimento foi instantâneo e desproporcional ao prazer de empunhar o estranho objeto vindo do Oriente.

Hoje a cada esquina eles estão sendo oferecidos pelos camelôs nas ruas centrais de Campina Grande. Kafkiano assumido, hipoteticamente fico pensando na reação do caixeiro viajante Gregor Samsa ou mesmo de um Franz Kafka (1883-1924) ao ver o tão esquisita máquina fruto do avanço da ciência chinesa ou indonésia. Ou mesmo observar um Nabokov, autor de Lolita, amante das borboletas e colecionador de várias espécies ver uma dona de casa queimar as asinhas amarelas ou azuis de tão delicado inseto.

Mesmo sem ter a agilidade de um Guga, minha mãe foi pioneira neste novo esporte olímpico que já se consolida no Brasil: o tênis de inseto. Ela desistiu da raquete e repassou o mortal artefato para outra vizinha.

Inimiga da biodiversidade, a raquete elétrica espalha-se como uma peste de mosquito da dengue, voando baixo pelo centro, sucesso de vendas. Fatal para moscas, muriçocas, mariposas ou borboletas, a máquina da China é uma espécie de “cadeira elétrica” do vôo. Guerreiros, os maribondos se organizam na resistência.