quarta-feira, 25 de maio de 2011

Nobres piratas


No quarto filme “Piratas do Caribe” conjuntamente reis e mercenários partem em busca de uma mítica fonte da juventude. Sem que isso faça sentido, os momentos iniciais do filme me fizeram lembrar a coleção de livros que nunca tive os chamados tesouros da juventude. Mas também, a película me faz recordar prazerozamente do livro “A ilha perdida”, um dos primeiros livros que possuí, da coleção Vagalume, da Editora Ática.

No filme estrelado por Johnny Depp inaugura um novo ciclo inspirado no desejo (de juventude, de prazer e de riqueza) e simbolizado por uma poética da água doce. Se nas aventuras anteriores o mundo era metaforizado pelas feras marinhas, em “Piratas do Caribe- navegando em águas misteriosas” o desejo vem codificado em forma de mulher, ou melhor, em forma de sereia. Devoradoras, elas se aproximam e hibridizam num só golpe desejo e morte, como deve ser tanto na psicanálise ou na própria mitologia. A sereia e o missionário religioso, um amor impossível. Um desejo que se realiza nas águas mortas, nas águas paradas e profundas, na mitologia de Iara, para deles extrair a água salgada da lágrima de dor e interdição. Pureza e perigo, um simples desejo, um homem e uma mulher.

Divididos não só por bandeiras e escudos, espanhóis e ingleses estão separados pela interpretação de um único livro, a Bíblia. O que os une é o desejo de conquista do mundo. A vida eterna proporcionada pela fonte da juventude funde-se com a busca de salvação da alma do cristianismo.

Todas as expedições partem de Londres, mítico e antigo “centro do mundo”. O desejo colonial não tem limites. E o projeto real também não passa de uma devoração do planeta no qual os ingleses se afogam nos seus próprios desejos de poder. Tragados, entorpecidos, enfurecidos sedentos do sol tropical, os conquistadores se despojam da ética protestante ou das culpas católicas para deliciarem-se com os sabores da colônia, da periferia.

O projeto colonial ou de conquista despe-se assim de todos os propósitos religiosos, salvacionistas ou humanitários. A ganância os une e os separa. A figura do pirata Barbossa é emblemática. Cooptado pela coroa britânica para buscar a fonte da juventude, veste-se grotescamente como nobre e comporta-se como pirata. Ambíguo, ele denuncia a própria condição pirata de todos os impérios.

Enquanto isso, o personagem Jack Sparrow interpretado genialmente por Johnny Depp parece chaplinianamente caminhar pelas margens da narrativa, mas paradoxalmente ocupa seu centro. É um vagabundo genial que filosofa a cada passo pelos caminhos contemporâneos do cinema hollywoodiano.

Catar feijão


Curvada, com uma vassoura de palha numa das mãos, Dona Tereza junta às sementes dos mais diferentes tipos de feijão. Dona Tereza vive de catar os grãos que escapam dos minúsculos buracos das sacas que sobem e descem tangidas pela força bruta dos homens mulas, os cabeceiros da Feira Central de Campina Grande.
Parece não ter direito a falar nada. O seu silêncio humilde me oprime. Dona Tereza Cabral parece um animal, um gato ou cachorro velho, que de tanto ser maltratado na rua, tem medo de encarar os humanos ou viver no mundo deles.
Vive ao rés do chão, numa tarefa infinita de sobreviver, eternamente curvada. Parece enterrada na sua própria tristeza e condição. Dona Tereza Cabral sabe que as sementes não germinarão no asfalto encardido do mercado. Tal como os grãos perdidos, Dona Tereza quer escapar de todo jeito. Tímida, ensimesmada, ela me diz que vem catar feijão do chão quando a saúde deixa.
Guardados pelas mãos enrugadas da mulher num pequeno saco plástico os grãos se misturam num triste carnaval de cores. Macassar, mulatinho, sempre verde, preto ou até mesmo as gordas favas. Completa-se assim o estranho ciclo do feijão perdido. Saídas do caminhão do atravessador, descarregadas pelos cabeceiros para os donos dos armazéns, as sacas sempre deixam escapar alguma coisa. E o que cai ao chão é varrido pela necessidade absoluta de Dona Tereza Cabral. É no duro chão que a velha me ensina que no Brasil quase gigante potência mundial tem muita gente passando a mais vergonhosa das fomes.
A pedra de Feijão é um entroncamento nervoso da Feira Central onde cada pedaço é disputado por pedintes, caminhões, cabeceiros, ladrões e feirantes. Penso que esse eterno movimento de carga e descarga de grãos parece encobrir as desigualdades. Gatos quisilentos se espreguiçam em baixo dos bancos. Bêbados tomam uma burrinha de cana dividindo um caroço de umbu verde entre os dedos. E o amargo da vida ou o azedo do dia vai sendo amenizado, escapando pelas margens, escorrendo como um esgoto do lugar.
Chapeados se aglomeram perto de um caminhão. Alguns dizem que os donos dos armazens não sabem o que é carregar peso. Josafá, 30 anos de feira, saiu de Alagoa Nova disposto a nunca mais voltar. Carrega o peso do lugar nas costas. Diz que sabe fazer rede de pescar, que foi pintor de paredes e pedreiro. Não sabe até quando vai ter força para sobreviver por ali. Uma saca de 90 quilos na cabeça cheia de feijão, alguns grãos caem no chão para dona Tereza. O que aparece tô carregando... só não carrego esse saco pra minha casa porque é crime.