segunda-feira, 15 de março de 2010

Ícaro sem rodinhas


No pátio do condomínio, o colega menor foi quem primeiro chamou a atenção dos pais para o fato:

-Ícaro, as rodinhas da tua bicicleta tão voando!

De fato, parece que era chegada a hora de constatações do tipo “Nossa! Veja como o menino cresceu, precisamos fazer alguma coisa”. Assim, o pai do coleguinha rapidamente abre a caixa de ferramentas na mala de seu carro e descola uma chave de uma antiga bicicleta. A oficina de pais e filhos se instala e uma das rodinhas que protegem o menino dos tombos de aprendiz é retirada. Hesitante, como se tivesse apenas uma asa, sai voando desajeitado, constatando o que o coleguinha já tinha observado.

- Eu consigooo! Eu consigooo!!

-“Olha pra frente menino!!”, berram todos em um coro preocupado, como se fosse um conselho pra o resto da vida, olhar pra frente sempre, sem que nada nos perturbe.

Fico curioso e instigado a retirar a outra rodinha, mas discretamente contenho minha emoção. Ao mesmo tempo, preocupado com os tombos e ansioso de ver Ícaro andar de bicicleta proponho que a oficina mais uma vez entre em ação. Confiante no seu próprio equilíbrio, ele pára a bicicleta azul para retirarem sua última asa.

Como um milagre, as duas rodas seguem uma linha imaginária e o menino equilibra-se em seus próprios sonhos. E o mundo é só uma paisagem móvel na bicicleta que roda encarando a própria impiedosa máquina do tempo, severa a nos levar.

- “Olha pra frente, olha pra frente!!”, gritávamos inutilmente.

Ícaro olhava para frente e dentro de mim como pai só conseguia olhar para trás, lembrando seus quase oito anos. E olhava mais para trás ainda. Mais e mais me recuava e me via pedalando sozinho pela primeira vez uma enorme e descascada Barra Circular pelas ruas de barro da minha infância. E lembrava os inúmeros tombos que a vida nos dá e das inúmeras vezes que a gente se levanta, avalia os arranhões, levanta a bicicleta e seguimos olhando pra frente, confiantes em não sei o quê.

Os pneus agora parecem vivos como duas novas asas de borracha a desenhar trajetórias nesse eterno movimento.

Tento pará-lo para saber a sensação de aprender a andar sozinho, mas é inútil. Já não é preciso também avisar que é necessário olhar para frente. Já não é necessário apará-lo segurando por baixo da sela. Ele segue seu destino...

O que me resta? Um inútil par usado de rodinhas de bicicleta, muitas lembranças, uma estranha felicidade clandestina e uma crônica na mão suja de graxa.