domingo, 2 de agosto de 2009

O MEZ DA GRIPE (Ou: variações de um vírus para jornal, piano, TV, internet e orquestra AH1N1)


“Atraídos como moscas ingênuas eles nem suspeitavam da silenciosa e invisível contaminação. Consumidores oportunistas iludem-se com as mensagens de até 80% de desconto em todos os itens. E o vírus da grippe circulava livremente pelos corredores climatizados do Leviatã Shopping. Construído como uma chaga que cresce dia após dia nas margens dum rio morto, o centro comercial vai ser vitimado paradoxalmente por um simples vírus.

Agosto, mês depois, o colossal Leviatã está quase vazio. Apenas alguns sobreviventes funcionários armados da segurança, usando máscara tal como bandidos, guardam o local. Como se todo aquele sonho tivesse apodrecido junto ao rio. As pessoas escondem-se em suas casas, com estoque limitado de comida, esperando boas novas ou Godot em frente da fogueira eletrônica da televisão.”

(Corte na carne do vídeo. Imagem chuviscada na TELA...)

(... ZZZZZZZ. Sem sinais de transmissão digital.)

Desperto num zapping. Na rede, um livro de asas abertas parece pousado em minhas mãos como um pássaro agourento.

Traço um cenário sinistro assim num pesadelo inspirado na leitura da novela “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, publicado originalmente em Curitiba, pela Fundação Cultural, Casa Romário Martins, em 1981. Comprei o moribundo exemplar num sebo, anos atrás. A leitura sempre adiada parecia esperar o momento certo. Encontrei-o emparedado, como num conto de Poe, entre dois pesados livros de Dostoiévski, na desordem de minha bibliotecaverna.

O pânico com a nova gripe espalha-se nos meios de comunicação como um vírus. A doença parece alastrar-se como um boato. As autoridades em pânico aconselham calma....tudo está tão vazio.

“Um homem eu caminho sozinho nesta cidade sem gente e as gentes estão nas casas” (p.9). O livro de Valêncio Xavier é também um passeio, um mórbido passeio composto de recortes de jornais da época, do início do século XX, quando a grippe espanhola vitimou milhares de pessoas pelo mundo.

Num desvio, largo o livrinho de 75 páginas e me dirijo ao gordo Almanaque Abril. Um professor meu, Giovanni, muito tempo atrás, me disse que só conseguiu passar no vestibular por conta dele. E assim, sempre tenho um aqui em casa, como um remédio necessário e amargo. Logo minhas aflições são recompensadas com a informação precisa e curta. Diz que a Espanhola foi a maior pandemia de gripe que se tem registro e ocorreu nos anos de 1918 e 1919, com uma letalidade de 2%. E imagina-se que o vírus tenha surgido nos EUA e se espalhado pelo mundo, de carona, por conta da movimentação de tropas durante a I Grande Guerra.

Continuamente a mesma farsa se repete na História. Comerciais, clipes, guerras, terroristas, prisões como a de Guantánamo, porcos e vírus, tudo misturado, argamassado. Militarismos & sanitarismos impotentes no descontrole da situação. Cenário de uma guerra contra o terror invisível desenha-se. Paradoxalmente, acho que a imagem que mais corresponde ao momento de hoje pode ser achada na capa do disco “Animals” do Pink Floyd, mais precisamente nas músicas “Pigs on the Wing” e “Pigs on the Wing 2”, de 1977. Sim, concretamente os porcos estão a flutuar. E o ar se tornou rarefeito, pesado, emporcalhado, tal como no Senado. No entanto, como Marshall Bermann pinçou cirurgicamente da lavra do barbudo Marx: tudo que é sólido se desmancha no ar. E a levitação é uma arte das mais pesadas. Emporcalhamos tudo, big man, pig man! Cachorros cínicos reclamamos injustamente da natureza. É bom também lembrar que na Revolução dos Bichos, os porcos estão estrategicamente sentados no poder. O discurso sanitário e moralista gosma em suas bocas. Urge uma nova e marxista-leninista-trotskista-maoísta permanentemente mutante & ambulante revolta da vacina, dessa vez liderada por um vírus emporcalhado.

Influenza num país de múltiplas influências, conflitos e confluências. Influenza parece ser eterna e não ter remédio para ela devido à sua própria mutação, modificação. Vasta combinação e recombinação de genes, o vírus é mais rápido que a ciência e a sociedade de consumo. Ao invisivelmente sentenciar a limitação dos saberes do homem, a chamada Gripe Suína nos devolve a condição bestial de porcos, porcos com asas. Gripe eterna que atravessa a história num único espirro milenar. Metáfora viva da globalização, ela atinge todos, num único erótico sopro de prazer e morte. Espalha o terror em ambientes fechados e denuncia a sociedade que se fecha em si mesma. Provoca o vazio e nele se desenvolve. Entre o Estado e o Mercado, num entrelugar, o vírus habita os corpos e devora as mentes.

Mas retornemos ao livrinho-novella de Valêncio Xavier. Bricolagem hábil de textos dos mais diversos gêneros (notícias, anúncios de jornais, relatórios), “O mez da grippe” também me faz lembrar a pioneira arqueologia moderna dum Gilberto Freyre ao escacar nos jornais pernambucanos recortes que construam um retrato da representação da escravidão num outro livrinho belíssimo, que também vale ser lido. Ou mesmo as aulas pós-modernas dum tropicalista Jommard Muniz de Brito ou dum antenado professor como Cláudio Paiva, todos os dois com seus abismos e provocações, num mítico DAC (Departamento de Artes e Comunicação) da UFPB, tempos atrás. O ato de brincar com os recortes nos lembra que a linguagem também é um jogo de múltiplas combinações.

Em “O mez da grippe”, no prefácio de 1981, escrito Francisco Battega Netto vê-se na “escrita” pós-moderna de Xavier um livro-colagem que traz dentro de si as possibilidades de sucessivas montagens e desmontagens do discurso, tal como o vírus da gripe. Ao recortar os diversos textos e imagens de uma época ao mesmo tempo distante e próxima, Valêncio empunha uma tesoura que dá nova vida (sentido) a fragmentos que combinados de forma inovadora vão alimentar o próprio corpo/texto da literatura, da novela em si.

Um livro desesperadoramente atual mesmo 28 anos depois de publicado “O mez da grippe” repete-se como uma fantasmagoria pós-moderna na televisão e nos jornais brasileiros. Quem se habilita a fazer uma nova montagem sobre esta pandemia no suíno mês de agosto/desgosto?

Ou como diz meu filho Ícaro nos seus recém completados sete anos de sabedoria, ao ser indagado sobre o assunto: “Papai, a literatura é uma planta carnívora!”.

Um comentário:

MARIA HELENA DE MOURA ARIAS disse...

Olá Carlos,
Gostei muito de seu texto. Também adiei a leitura deste livro, mas lendo agora, estou adorando.
Parabéns!
Maria Helena de Moura Arias-Londrina-PR (colega do Doutorado na UNESP)