domingo, 8 de fevereiro de 2009

Linha de passe


Inutilmente as mãos são levantadas e dirigidas ao céu. Cenas se misturam, num caótico balé de mãos no qual se fundem os braços de torcedores e fiéis. Mãos indefinidas que clamam um não sei o quê, mas essas imagens parecem tecer os fios narrativos do filme “Linha de passe” (2008), dos cineastas Walter Salles e Daniela Thomas. Um filme sobre o Brasil, sobre fé, sobre futebol...enfim, tudo isso junto.
Os pés que chutam a bola, que dão o passe, no glamour da primeira divisão num estádio ou no campinho de barro na periferia. Pés calejados que também percorrem o cinza claro ou escuro de São Paulo, tão bem captado pela fotografia de Mauro Pinheiro Jr. Entre a chuteira desgastada, o tênis adidas do bói ou a bota encardida do operário, os pés percorrem as linhas imaginárias da cidade, linhas que dividem a riqueza e o esplendor de uma Avenida Paulista do resto dos lugares esquecidos pelo discurso de cidadania dos governantes. Linha que demarca o pênalti, o momento decisivo, o perde ou ganha. Linha de passe, em que a arte se completa como um todo, no qual um dá uma chance ao outro, cedendo a frágil possibilidade de marcar o gol.
Ao terminar de assistir o filme nos dá a impressão que se passaram mais de três horas, devido à repetição do penoso cotidiano da metrópole paulista, sempre visto a partir da periferia, como se o filme fosse construído pela oscilação entre a repetição da brutal rotina e sua sutil diferença, gerando no espectador uma tensão, uma esperança de gol ou de melhora nas condições de vida. É como se fossemos forçados apesar da crise a também a acreditar, a ter fé, levantar as mãos como babacas torcedores e fiéis, sórdidos autômatos humanos, habitantes do país do futebol a espera de um milagre.
Não é a toa que a personagem principal de “Linha de passe” é a diarista Cleuza (interpretada por Sandra Corveloni), de 42 anos, mãe de quatro filhos e grávida do quinto, que torce fielmente pelo clube Corínthians. O futebol do filme não se desenrola no campo, mas sim na vida cotidiana. É como se o jogo ou o culto fossem metáforas desgastadas da vida, apenas espetáculos catárticos. O verdadeiro futebol de “Linha de passe” vem nos dribles feitos no trânsito da metrópole pelo motoboy Dênis, filho mais velho. Ou na busca obstinada de Reginaldo, o filho mais novo que procura o pai que nunca conheceu. Ou no “craque” Dário, filho que está prestes a completar 18 anos, estando excluído tanto do futebol quanto do mercado de trabalho. Ou no evangélico Dinho, também filho de Cleuza, que hesita em sua fé mas tenta seguir a impossível linha, num caminhar frenético.
“Linha de passe” é mais um retrato profundo do Brasil pelas lentes de Walter Salles, dessa vez dividindo com Daniela Thomas o olhar sobre um país marcado pelas contradições de uma modernidade conservadora, numa metrópole como São Paulo. Longe de ter uma estética roliúdiana ou de um melodrama televisivo comum, o filme inspira-se primordialmente num gesto documental, como se num precioso momento a ficção conseguisse de maneira estranha tocar e nos mostrar uma significativa parte de nossa difícil realidade.

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