domingo, 26 de abril de 2009

Esparrela


*Carlos Azevedo
Com uma armadilha imaginária, o teatrólogo Fernando Teixeira capturou um imenso urubu. Conviveu com ele, observou seus hábitos e instintos. E, dizem que com a habilidade de ator com mais de 40 anos de palco incorporou a personagem chegando a voar e tudo.
Egoísta, escondeu o animal dentro de si. E depois de chegar até a decifrar seus pensamentos, silenciosamente foi mostrando aos amigos mais chegados o resultado de tal convivência. Nas primeiras noites da segunda quinzena de Abril, foi que houve a primeira apresentação do urubu na cena paraibana. Não foi num palco tão tradicional como o teatro Santa Roza ou num grande espaço tal como Paulo Pontes. Escondido numa das salas do antigo grupo Thomas Mindelo, logo ali nas quase-ruínas do centro histórico de João Pessoa, foi montada uma nova armadilha, dessa vez para o público. Só assim as pessoas puderam ver maravilhadas o resultado da peça “Esparrela”, na qual o teatrólogo interpreta ao mesmo tempo o homem Manoel e o urubu Arquimedes, essa ave genial que abre as suas longas asas sobre a existência humana e animal como um todo. Pasmem, matematicamente Arquimedes nos ensina a voar.
A cena de “Esparrela” é minimalista. Um espetáculo pocket, mas com uma densidade existencial muito grande. A platéia deve ser sempre pequena (umas 30 pessoas) e o ator tranquilamente consegue olhar no olho de cada um. Sem maquiagem, o rosto do ator Fernando Teixeira vira uma máscara de carne, máscara esta devorável pela fome do urubu Arquimedes.
Operando uma síntese corporal entre bicho e a pessoa, Teixeira valoriza e ao mesmo tempo denuncia a condição animal dos homens. Preso ao calcanhar de Manoel, o urubu Arquimedes é sua perdição e sua libertação. A fome de existência permeia todo o espetáculo, fome esta que devora a todos.
O corpo do ator em cada gesto, em cada passo, parece obstinado a cumprir a sina de todos e fazer girar a roda da vida-morte-vida. É uma travessia corporal na qual Teixeira transporta em seu corpo várias vozes numa polifonia infernal que irradia todo o peso existencial do espetáculo.
Ao ver esta síntese entre animal e homem me veio, sem que o motivo eu saiba a imagem do antigo Lixão do Róger visto da antiga Casa da Pólvora. O céu ardia em cores que se transformavam a cada minuto. A fumaça das fogueiras dos montes de lixo e os urubus circulando a paisagem. Entre a contemplação e o espasmo, entre a vida e a morte, “Esparrela” é um dos espetáculos mais importantes da cena paraibana dos últimos tempos.

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